Fulaninha: pequena aferição

por Mario Cascardo

Para início, o primeiro plano, provavelmente referido por Hernani Heffner em sala de aula como o mais bonito no cinema brasileiro. Está uma árvore e os créditos, que passam; rasam pássaros e começa o movimento da câmera: lentamente, da verde copa rumo à Copacabana. Copacabana e sua natureza própria. Um dos poucos planos abertos de A Fulaninha, filme debruçado sobre miudezas bairristas, mas atento e referente a questões nacio-geracionais. Natureza de ser cinema.

O bucolismo em que a árvore insiste é substituído pela fachada do prédio, numa sequência que pode ser lida (e aqui tento ler a escolha de Hernani) como salto entre os primeiros cinemas brasileiros, o regionalismo de Humberto Mauro, e o momento urbano de escassês de esperanças e cinemas em meados da década de 80. Em ambos a colheita do espontâneo, cinemas carentes de demasiados artificialismos e teorias.

O filme é a aventura de filmar. Como Mauro emboscava pássaros com sua câmera. Copacabana uma grande armadilha para captura e sobrevivência do filmando. O vídeo do personagem Bruno, que flagra a fulana em planos similares aos que David Neves registrou, com sobras de negativo de amigos, momentos cotidianos do cineasta de Cataguazes, remetendo ao filmar de Humberto na ativa. Copacabana de Neves uma cachoeira.

(Buscar analogias é inevitável depois de se ter lido e ouvido a respeito dos cineastas. Mais ainda tendo Fulaninha sido visto por nós em seguida ao curta Mauro, Humberto. Fulaninha, no entanto, sobrevive ao hermetismo das metalinguagens e referencialismos. É um filme divertido, dos maiores sucessos de bilheteria daquele período.)

Confirma-se o lido na crítica dedicada ao cineasta: cinema sem teles, sem recortes de luz e pessoal. Moradoramador, completo e compreendo
um pouco o professor: um plano fértil para o cinema.

O Invasor

por Pedro Ferreira

O primeiro plano de O Invasor já nos revela os processos que a narrativa sofrerá na mudança dos meios, e o que de essencial Beto Brant deseja modificar quanto à questão do ponto de vista. Em um plano-sequência, assistimos os personagens de Marco Ricca e Alexandre Borges, respectivamente, os engenheiros Ivan e Gilberto, chegarem a um bar na periferia de uma grande cidade, e sentarem frente a Anísio, que logo revela ser a câmera subjetiva deste plano-sequência. No diálogo, o crime está se configurando – Anísio se mostra dono da situação, Gilberto cede às exigências e nos parece cauteloso, Ivan não gosta do sujeito, ao mesmo tempo que o teme. – Tais relações entre os personagens se manterão iguais pelo resto da narrativa. Este plano-sequência que inaugura o filme já mostra de que ponto de vista se desenrolará o enredo, quem será o agente da história e, sobretudo, mais relevante a esta pesquisa, a origem do crime.

Se Ismail Xavier nos apresenta a questão do ponto-de-vista como um dos fatores pertencentes à trama que pode ser analisado na adaptação, pois co-existe entre os meios, em O Invasor, Beto Brant não esconde do espectador de quais olhos assistiremos o acontecer das ações, e o verter de tal ponto-de-vista em relação à obra literária acaba por ganhar significado discursivo. Além de indicar a impossibilidade de posicionar o filme em primeira pessoa, da mesma forma como esta se apresenta no livro, Beto Brant precisa suspender os pensamentos íntimos de Ivan – pensamentos estes que o livro não tem pudor de investigar - e manifestá-los na imagem. Sobre isso, o cineasta respondeu: "É muito tentador colocar belos trechos do livro como voz em off para caracterizar o estado de espírito do personagem, mas não posso – tenho que trabalhar com o meu meio." Pensar a transposição do estado de espírito de um personagem, do livro ao filme vem nos revelar uma característica intrínseca do aparato cinematográfico para a qual o cinema contemporâneo vem cada vez mais se tornando atento.

Se o tempo narrativo da literatura é por excelência o passado, embora a palavra possa viajar do passado para o presente ou para o futuro, o cinema, por sua vez, tem na imagem em movimento uma única dimensão temporal – a de um eterno presente, que se constrói e se renova em cada plano. Enquanto Marçal Aquino tem a possibilidade de revelar a infância ou as expectativas futuras de Ivan para caracterizar o personagem, ou trabalhar com axiomas indiscutíveis ("senti uma pontada no estômago") para contar seu estado de espírito, Beto Brant será obrigado a mostrá-lo em um aqui-e-agora, através das expressões labiais, dos gestos miúdos ou do modo como o personagem segura um copo – gestos cuja compreensão se baseia mais na interpretação do que na certeza. No seu mais recente filme, Cão Sem Dono, Beto Brant sintetiza a questão temporal do meio cinematográfico em um diálogo entre os dois personagens principais, quando Marcela diz: "Nosso namoro terá um começo, um meio e um fim.", e Ciro a responde: "Não, nosso namoro só tem meio.", e é este meio, isto é, o presente continuado do relacionamento que nos é mostrado na duração do filme.

O cinema e o pensamento contemporâneo seguem tal suspensão dos tempos passados e futuros, revelando-os, respectivamente, como construção arbitrária e possibilidades em meras especulações e expectativas. O rompimento desta linearidade evolutiva que a dialética de causa-e-efeito impõe inaugura um "cinema do presente", onde ganha notoriedade a expressão sensorial dos planos. Beto Brant ainda não explora o estatuto da imagem em O Invasor, mas tais questionamentos já ganham espaço em Crime Delicado. Este cinema contemporâneo tenta reaver o status de sua matéria-prima: a imagem em movimento. Na literatura, esta suspensão dos tempos também está presente, sobretudo a partir do início do século XX, como ocorre, por exemplo, no livro Um Aprendizado ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, que começa com reticências e termina com dois pontos, indicando a existência de um passado e futuro incapazes de serem concebidos, em um livro onde o texto busca chamar atenção para a matéria-prima literária: a palavra. O livro O Invasor, de Marçal Aquino, assim como o filme de Beto Brant, em certo sentido, se afastam dessa tendência, pois se estruturam de maneira linear – a opção pela linearidade implica um determinado tratamento do motivo do crime.

A inversão do ponto de vista fundamental do filme vai retirá-lo da subjetividade do sujeito tal como se apresenta no livro, e colocá-lo em múltiplos pontos de vista, priorizando em momentos significativos o ponto de vista do invasor. O invasor aqui não é propriamente Anísio, por mais que ele seja o sujeito da câmera subjetiva no primeiro plano-sequência, e em diversos outros planos do filme. O invasor é a periferia, e Anísio é o seu arquétipo. Durante o filme, assistimos a interpenetração cultural e a "invasão" desta baixa cultura em um universo central que não lhes pertence – do ponto de vista da cidade, assistimos a queda das tradicionais hierarquias nesta cidade onde todos são concomitantemente algoz e vítima da competição deste capitalismo selvagem. O crime tem origem na ganância de Ivan e Gilberto, e termina nas ruínas de uma cidade violenta, na queda das concepções tradicionais (o policial se torna vilão, o engenheiro pega em armas, e o amor se torna objeto de manipulação), neste atual mundo caótico e sem perspectivas. A origem é uma espécie de ganância inevitável do homem que o capitalismo desvairado incentiva, e é também inevitável o culminar neste caos. A manutenção da ordem racional só é crível nas aparências mascaradas (este é o significado do último plano do filme, quando Ivan é entregue nas mãos de Anísio por um policial corrupto, e o que vemos é Marina, dormindo e sonhando). Durante todo o filme, o que Ivan tenta fazer é fugir deste fim inevitável, por culpa ou medo, mas tal processo é irreversível, segundo as leis fundamentais da linearidade – Gilberto lhe responde: "Nem pense em tirar o corpo. Você está nessa comigo e vamos até o fim. Não dá mais pra pular fora, entendeu?".

Este olhar da cidade enquanto palco de violência figura entre muitos dos filmes brasileiros da atualidade, em títulos de peso internacional como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, ou Carandiru, de Hector Babenco, para citar os casos mais evidentes. Se o cinema novo recorreu à periferia em seu projeto de trazer para as telas a realidade do povo e procurar nela a identidade cultural brasileira, o cinema brasileiro contemporâneo, tanto os filmes de ficção como os documentários, vai procurar neste espaço um sentido distinto daquele da década de 60. Cidade de Deus e Carandiru tendem a uma humanização dos personagens da favela de modo a torná-los em vítimas das circunstâncias em que vivem – o espaço se torna o vilão, enquanto as pessoas são vítimas tentando se defender. Neste sentido, Beto Brant caminha no sentido oposto de tal caracterização: o espaço da periferia e da classe alta não se diferem senão pelas máscaras de hipocrisia que veste a cidade; o vilão é esta sociedade que visa o lucro acima de tudo, seja na pessoa do bandido Anísio ou do empresário Gilberto. Cinematograficamente, tal visão de mundo se exprime nas seqüências em que tais máscaras são tensionadas, como o último plano do filme já citado, ou na montagem paralela entre o assassinato de Estevão e a encenação familiar de lobo-mau que Gilberto faz para divertir a filha.

WHK, uma carreira de êxitos

publicado na revista Filme Cultura (nº74, 1973)

Prêmio de melhor direção por As Deusas, Walter Hugo Khouri é considerado como um dos cineastas mais pessoais do cinema brasileiro. Sua obra, séria e digna, tem se pautado por uma rara coerência que faz com que seu cinema seja considerado de autor.

Nascido em São Paulo, em 1929, Khouri fez seu primeiro longa-metragem em 1951/3, O Gigante de Pedra, com escassos recursos. Já seu segundo filme, Estranho Encontro (1958), não obstante o baixo custo, obteve grande repercussão na crítica que elogiou a tensão e o intimismo obtidos. Fronteiras do Inferno (1959), o terceiro filme, foi também sua primeira experiência na cor, mas passou algo despercebido. Em seguida, com Na Garganta do Diabo (1960), o cineasta seria laureado com o prêmio de melhor argumento no Festival Internacional de Mar del Plata.

O êxito comercial só vem com A Ilha, que junto com O Palácio dos Anjos, são dois títulos detestados por Khouri. Porém Noite Vazia (1964), não só é apontada pelos críticos como a sua melhor realização, como também logra êxito sem precedentes, tanto no Brasil quanto no Exterior. Depois de fazer um episódio para As Cariocas (1966), dirige O Corpo Ardente com a atriz Bárbara Laage. Em 1968 fez As Amorosas e, em 1970, O Palácio dos Anjos.

As Deusas é o décimo longa-metragem de Khouri que diz: "Acho que filmes não devem ser explicados, mas sentidos, absorvidos, entendidos. No caso de As Deusas, isso é mais verdade do que nunca. É um filme para o plexo solar do espectador e não para sua compreensão racional, para seu entendimento direto."

A respeito das relações desse filme com os outros, Khouri é categórico: "As relações são todas, totais. Não vejo como é possível fazer filmes sem que os mesmos estejam relacionados entre si, desde que as mesmas pessoas os fazem e essa pessoa é uma soma, uma personagem individual. Para mim O Corpo Ardente e As Deusas são um único filme, apesar das diferenças aparentes. São uma mesma entidade, o prolongamento um do outro. Não foi premeditado, mas aconteceu assim, espontaneamente. E isso só me alegra, pois O Corpo Ardente sempre foi meu filme favorito. Quanto a isto, agora terei que dizer Corpo Ardente - As Deusas, pois já não posso separar um do outro."

Khouri ficou contente de ganhar a Coruja de Ouro, "o prêmio mais importante do Brasil, atualmente. Num trabalho difícil como o do cinema brasileiro, num ambiente tão duro e exaustivo, qualquer reconhecimento é reconfortante, é um estímulo, principalmente quando é oficial e para um filme sem concessões. Eu já tinha ganho o prêmio INC, mas a Coruja propriamente dita, foi a primeira".

Agora, prepara-se para lançar seu novo filme. Trata-se de O Último Êxtase, que gira em torno de um adolescente, Marcelo. Com 18 anos, ele está inquieto, insatisfeito e revoltado. Por isso, resolve sair de casa por algum tempo, indo acampar num lugar deserto, na companhia de alguns jovens da sua idade. Mas, posteriormente, o convívio com estes e a presença de um casal bem mais adulto levam o protagonista novamente para a angústia e a frustração. É quando a procura de seu êxtase transforma-se então numa revolta impotente, mas da qual ele não abdica, nem abre mão. "É uma fita - diz Khouri - que, mais ou menos, se inscreve diretamente no clima de As Amorosas, numa tônica de divisão masculina, num tom um pouco mais realista do que As Deusas e outras fitas minhas."

O elenco é formado por Lilian Lemmertz, Luigi Picchi, Ewerton Castro, Dorothée Marie Bouvier, Angela Valerio e Wilfred Khouri, o filho do diretor, que vive o personagem de Marcelo. Com iluminação a cores de Antonio Meliande (revelado em Paixão na Praia), a fita teve montagem de Silvio Renoldi, música de Rogério Duprat e produção de Alfredo Palácios e Antônio Galante, todos presentes na ficha de As Deusas.

Agora Khouri deverá decidir entre vários projetos. A sua preferência recai sobre As Feras, que deverá ser um "filme de terror metafísico passado numa estalagem do século XVII, abordando problemas do subconsciente. O outro projeto meu é "O Enigma", que pretende dissecar todas as repressões que existem nas relações pai-mãe-filha. Há ainda a intenção de fazer "O Desconhecido", mas acho que o mais provável será "As Feras".

transcrito por Mario Cascardo

Walter Hugo Khouri

por Diogo Cavour

Walter Hugo Khouri (São Paulo, 21 de outubro de 1929 — São Paulo, 27 de junho de 2003) foi um diretor bastante único e significativo dentro do panorama cinematográfico brasileiro da década de 60 até hoje. Realizou 25 longas-metragens, ganhou muitos prêmios e indicações (como a Palma de Ouro em Cannes por Noite Vazia), porém, ainda é mais conhecido por sua obra única e quase distoante do cinema brasileiro predominante daquele momento, o Cinema Novo.

No inicio da década de 60 o cinema brasileiro, através do cinema novo, tinha um cunho social muito forte, segundo os cinemanovistas seria o cinema que mudaria o mundo(?). De fato, foi importante, mas, por outro lado, representantes do cinema novo viam o cinema feito por Walter com desconfiança, o chamavam de alienado, porque não retratava em seus filmes a realidade social do Brasil, o que para muitos é um grave engano.

Khouri buscou um cinema universal com um caráter particular e brasileiro, com absoluta qualidade. Costuma ser visto como um solitário na história do cinema por não se encaixar em nenhum movimento e nem deixar "pupilos" ou influência clara. Seus filmes mostram personagens que buscam sentido para suas existências angustiantes e se mostram bastante influenciados por cineastas como Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni, pelo jazz, pela obra de escritores como D. H. Lawrence e Albert Camus e de filósofos como Espinoza. Pessoal e homogêneo.

Debate com Hernani Heffner - parte I

O professor Hernani Heffner foi à sessão de O Exorcismo Negro, no dia 31 de outubro de 2006, e conversou conosco sobre a obra de José Mojica Marins. Aí vai:

Esse tipo de cinema sempre desenvolveu essas relações entre criador e criatura. Que no fundo é o que está na origem disso tudo, na literatura gótica lá do fim do século 18, início do século 19. Que ganha algumas configurações muito definidas, clássicas, tipo Frankenstein e O Médico e o Monstro... é uma estrutura muito recorrente na literatura de terror e no cinema de terror. Que diz muito de uma raiz cultural. Põe em cena e põe em cheque uma determinada estruturação da sociedade. Esse filme, Exorcismo Negro, é um filme bastante curioso na trajetória do Mojica, na trajetória do personagem, e na própria condução desse tipo de cinema dentro da Boca do Lixo, em São Paulo, ali na passagem dos anos 60 para os anos 70, porque foi assim uma das produções mais caras da carreira do Mojica. Era um grande produtor, o Massaini, que talvez fosse àquela altura, em termos financeiros, o maior produtor da Boca: ele tinha feito filmes mais caros, mais sofisticados, e com uma tentativa de grande presença no mercado, Independência ou Morte, o Casamento de Esmeralda, etc. e ele se voltou para a figura do Mojica, para o personagem do Zé do Caixão no sentido de não só buscar um elemento de mercado já comprovado – o Mojica era uma figura muito popular ai no começo dos anos 70 – mas também era um signo de um tipo de cinema que tinha voltado à tona com uma nova chave ali naquele momento. E o filme faz breves, brevíssimas menções a essa nova referência, que era O Exorcista, um filme americano que durou um certo tempo para chegar ao Brasil mas que tinha chegado ao Brasil ainda na década de 70, muito cortado, muito censurado, mas que de qualquer maneira fez muito sucesso... por coisas que se moviam, pescoços que se retorciam.. Aqui tem uma cena meio sem pé nem cabeça que é da cadeira que anda, entra no quarto da menina, etc, e que é um pouco uma tentativa de lincar, razão de ser dessa produção, a razão de ser de buscar vez a personagem, a dupla personagem de Mojica/Zé do Caixão, e utilizá-los como elementos de mercado dentro de uma produção aparentemente mais bem cuidada. Eu digo aparente porque a própria natureza desse subgênero, é preciso ter em mente o que é esse tipo de cinema, como é que ele se configura em meados dos anos 50 até o final dos anos 70, quando ele vai desaparecer de fato, e como é que ele configura uma determinada estética. É sempre uma estética que foge do certinho, que foge do bem feito. Foge de um certo enquadramento mais tradicional. Esse cinema surgiu como uma produção de baixo curto, B, uma produção com um circuito secundário de exibição, um circuito muito propriamente popular, fenômeno que ocorreu nos EUA, na Europa, no Brasil. O Mojica aflora dessa estratégia, aflora desse universo, e essa estética ela é muito dificil de definir – muitos dizem mal feito, muitos dizem tosco, uns tentam sofisticar um pouco mais, falam trash, bizarro, alguns até tentam criar categoria para isso. Talvez aquela que mais se aproxime seja aquela do psicotrônico, não sei se vocês já ouviram falar disso.

– Esse filme é psicotrônico! Isso vem de um estudioso americano que criou esse termo, era na verdade uma enciclopédia do cinema psicotrônico, Que envolve esse universo das múmias, dos zumbis, dos demônios, das figuras que estariam num mundo paralelo, num outro mundo, enfim, fora dos padrôes sociais normais, tradicionais. Psicotrônico lembra muito um estado alterado do ser, da alma, alguma coisa que foge de uma visão e de uma percepção digamos assim comum. Sobretudo o psicotrônico mais típico, tá muito associado ao universo das drogas, a esse estado alterado da mente no momento da viagem, e que empresta todo esse universo e associa a esse cinema essa chave-base que é assim: permite-se tudo! O personagem pode ser de qualquer maneira, pode fazer qualquer coisa, se estabelecer a partir de justificativas e motivações tênues ou às vezes nenhuma. AS coisas acontecem simpesmente porque acontecem, não há uma razão mais direta e não há uma sust mesmo estética para que as coisas aconteçam. Acontecem e ponto. Quando o Mojica surge pra valer, a partir do segundo filme, o A meia Note, ele responde diretamernte a uma inserção nesse universo cultural. E nesse momento aquilo significa uma ambiguidade enorme. Ali nos anos 60 o personagem do Zé do Caixão não e´nem bom nem mau. E ele tem algumas características que são bastante interessantes: ele p ex se aproxima de uma relação com o catolicismo, que ainda aparece aqui (no filme) como quadro cultural, religioso, mais unido em relação ao personagem, que é uma coisa que não existia. Sobetudo em relação ao Brasil. Não sei se vocês sabem, mas um dos filmes psicotronicos que já tinham sido criados, já tinham sido produzidos, e já tinham inserido o Brasil dentro desse universo.

Chico Antônio, o herói com caráter

por Fabio Andrade

Um dos maiores vícios deixados pelo Cinema Novo foi a pretensão de reescrever a história do Brasil. Resquícios desse sentimento parecem entranhados até hoje de forma assustadora em parte da produção cinematográfica brasileira, e por conta dessa tentativa de reconfigurar um passado, parte do presente permanece carente de interpretações. “Chico Antônio – o herói com caráter” parte dessa mesma motivação de redefinir um passado. Embora o encontro com um Macunaíma original represente um desvio de olhar para aqueles que raramente são vistos (e, no caso de Chico Antônio, foi inspiração para uma obra que transcende seu anonimato), é também uma tentativa de revisar a história pelos olhos da coxia, dos bastidores da ação. Motivação e filme, porém, são coisas diferentes. Eduardo Escorel tem plena consciência disso, e constrói seu filme ciente de que está lidando com uma pessoa, e não com um personagem histórico. É nesse salto que “Chico Antônio” transcende a herança cinema novista e torna-se obra atemporal.

Apesar de trazer “herói” em seu título, “Chico Antônio – o herói com caráter” acerta justamente ao ir pelo caminho inverso. Ele fala sim de um personagem esquecido pelo mundo, mas tem a sensibilidade de perceber que os personagens são importantes para determinadas pessoas, em determinados momentos. Chico Antônio encantou Mário de Andrade com sua voz, assim como provavelmente encantou várias outras pessoas que não possuíam a autoridade poética de Mário. Assim como existem diversos cantores espalhados pelo mundo que encantam pessoas todos os dias, mas que acabam esquecidos com o passar do tempo. Eduardo Escorel sabe que a diferença está no fato de Mário de Andrade ter imortalizado Chico Antônio, o personagem, em seu texto, e justamente por isso faz todo o seu filme construído não em torno de Chico Antônio (o que seria quase uma adaptação pro cinema do poema), mas sim em torno da relação dele com Mário de Andrade.

Com esse gesto, Escorel abre seu tema, e acaba fazendo uma emocionante poesia incidental sobre a memória. Em vez de falar do esquecido, fala do esquecimento. Não existem culpados ou heróis, existe uma situação que se formou por uma série de motivos que não necessariamente precisam ser julgados. Falar sobre a situação, a relação entre aquelas pessoas, é o que importa. Curiosamente, aos poucos percebemos que Chico Antônio nunca havia perdido, porém, a consciência sobre sua própria imagem: suas memórias em relação a Mário de Andrade estão sempre prontas, no topo da mente, para serem desfiadas. Chico Antônio sabe o que querem que ele lembre, e parece perceber que são essas lembranças que o mantém vivo no imaginário das pessoas.

É interessante, portanto, perceber como o filme registra o próprio processo da memória: ao chegar à casa de Chico Antônio, conhecemos alguém um dia famoso pelo canto, mas que diz não poder mais cantar. Ao ser lembrado de Mário de Andrade e Antônio Bento, Chico Antônio parece perceber que aquela relação se firmava justamente por meio de seu canto, e, por ela, volta a cantar. O esquecido aos poucos passa a se lembrar, e acompanhamos todo esse processo de frente. O filme gira, então, em torno desse grande acaso (a lembrança) e constrói toda a sua narrativa a partir disso. Seja ao tocar o ganzá que um dia dera pra Mário de Andrade, ou ao ouvir que um conhecido já havia morrido há dois meses sem que ele sequer ficasse sabendo, Chico Antônio (com e sem aspas) nos fala sempre sobre o tempo.

Esse tempo influi até mesmo na feitura do filme: vemos os meses passar - com todas as adversidades que por acaso não aconteceram - o filme se construir, a intimidade nascer, e, aos poucos, nascem novas relações. Elas surgem da de Mário de Andrade com Chico Antônio, mas passam a ser também da equipe de filmagem com Chico Antônio e com as pessoas que o cercam, com Antônio Bento, com a família de Mário de Andrade, com todo aquele material de pesquisa, chegando até à relação do espectador com aquele universo. Esse universo também é escravo do tempo e só faz sentido naquele momento. São mundos separados unidos por um breve instante, que nunca poderá se repetir da mesma forma como foi da primeira vez. Cada momento é único, insubstituível, e diz respeito somente a si próprio.

É por isso que o final do filme é tão bonito: vemos Chico Antônio cantar pela última vez, e sabemos que suas lágrimas não caem só pela lembrança de seu momento ao lado de Mário de Andrade e Antônio Bento, mas também por aqueles divididos com aquela equipe de filmagem, aquela história, aquelas lembranças, e até mesmo conosco. Ao cantar, Chico Antônio percebe que, por mais que cante novamente, nunca mais será como aquela vez. Nada nunca é.

Ato de violência

por Rodrigo Cazes

Ato de Violência (1979) se insere dentro de um momento do cinema brasileiro em que os filmes policiais estavam em evidência, impulsionados pelo imenso sucesso de Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia (1977), de Hector Babenco, no qual, em meio a um thriller bastante eficiente, se esboçavam algumas críticas ao esquadrão da morte da polícia carioca. Na mesma época o rei das pornochanchadas, Carlos Mossy, lançava Ódio (1977), sobre um advogado que vira assassino para vingar sua família, no melhor estilo Desejo de Matar. Outros dois filmes são seminais do gênero, aliás muito em voga também no cinema americano dos anos 70, dentro da cinematografia nacional: República de Assassinos (1979), de Miguel Faria Jr., que retrata, em tom de crítica, a vida do policial do esquadrão da morte carioca Mateus Romeiro e o reacionário Eu Matei Lúcio Flávio, de Antonio Calmon, em produção de Jece Valadão, que interpreta o líder do esquadrão da morte carioca, Mariel Mariscotte.

Ato de Violência narra a história do psicopata paulista, um serial-killer Chico Picadinho, no filme ocultado pelo pseudônimo “Antônio” (Nuno Leal Maia), que, após cumprir pena por um crime de assassinato e esquartejamento, sai da prisão e comete o mesmo delito, sendo preso de novo. O filme acompanha o personagem o tempo todo, numa narrativa que costura presente e passado, tentando desvendar o mistério que há por trás desse assassino brutal. De fato Antonio é vítima do abandono afetivo de sua família desestruturada, de uma sociedade que não dá mais oportunidades a ex-presidiários, enfim, de um mundo opressor, onde Antônio não se encaixa. Mas nem ele mesmo dá a resposta para o problema de sua doença: não há um porquê. Nisso o filme é interessante, mostrando as falhas da ciência positivista que não consegue enxergar a doença de Antonio mesmo após tantos anos e tantos testes psicológicos e psiquiátricos.

Onde o filme talvez não consiga mergulhar fundo é no próprio Antonio que, se não sai da tela em quase nenhum plano, permanece para nós um ser um tanto distante. Talvez o diretor tivesse medo de romantizar a figura do serial-killer, transformá-lo numa espécie de ícone ao avesso (nos EUA há uma mania até de colecionar cards desses criminosos), mas tanta frieza não fica bem para um tema tão terrível. O filme tem um diálogo forte com o documentário, especialmente nas cenas filmadas na prisão do Carandiru e isso talvez, em uma época de documentários ainda muito preocupados com uma “neutralidade”, tenha influenciado na decisão de não mergulhar fundo no personagem principal, em sua marginalidade (há uma seqüência em que isso se esboça, uma ronda desesperada e solitária de Antonio pela “boca-do-lixo” paulista, mas ainda é pouco) e sim mantê-lo apenas como um “objeto de estudo” e não como um amigo. Se isso tivesse ocorrido poderíamos ter aqui o grande filme brasileiro sobre serial-killers (que eu me lembre o único sobre esse tipo de assassino) mas, como ficou, mesmo correto, até demais, é apenas um bom filme a mais na filmografia policial brasileira, que ainda aguarda nova incursão sobre o tema. Destaque especial para a trilha musical, com os mestres da música instrumental brasileira Mauro Senise, Egberto Gismonti, Luiz Chaves e Robertinho Silva.

Aos que nos mostraram o caminho

por Juliano Gomes

Acho interessante começar pelo que me parece, e que, acima de tudo, sinto como o mais essencial. Chico Antônio: o Herói com Caráter é um filme que me emociona profundamente desde o primeiro contato, nas aulas do José Mariani, de Teoria da Imagem, há alguns anos trás. E o objetivo disso aqui é um pouco esmiuçar as origens do encantamento, que nasce de vários lados e que, de certa forma, encontro alguma coerência nisso, pois trata-se de um filme que brota essencialmente de encantamento, de arrebatamento.

Chico Antônio nasce para Eduardo Escorel numa conversa de bar com amigos. E uma fatalidade iria levar um dos seus amigos que trouxeram o assunto naquele chopp em Copacabana. Começava aí mais um capítulo da luta contra o tempo que marca toda a história desse filme, e também a história do documentário.

Chico Antônio exala um profundo desejo de preservação, de recuperação, de imortalidade que o cinema tem na mesma medida que não tem. O cinema é o meio morto-vivo por excelência. A sensação de presença é real, porém o que vemos está irrecuperavelmente perdido no tempo. A experiência está perdida. E o encantamento com a experiência nos leva ao cinema. A batalha perdida nos leva ao front.

Me parece que esse apego à experiência, à brutalidade (no sentido mais terno possível) dela, é o que fez Mário de Andrade tecer seu Turista Aprendiz, e o que fez Escorel realizar seu Chico Antônio. E isso vai trazer alguns traços que são marcos no documentário brasileiro. O encontro inicial do documentarista com seu personagem, o encontro da equipe no seu mergulho no acaso com seu cantador é talvez a imagem que mais me marca a memória. O filme que articula esses múltiplos encontros no tempo, marca terreno ao tratar desse assunto, assumindo-o como um dos eixos principais dessa obra – é interessante notar que os textos de Mário de Andrade são ouvidos pela voz do diretor e os textos escritos pelo diretor estão na voz de outro narrador, no caso, Ferreira Gullar. E essa imagem-encontro certamente é o ponto-chave da obra do maior documentarista brasileiro, e esse traço se desenhava naqueles tempos desesperançosos da virada dos 70 pros 80.

Daí brota outro eixo importantíssimo em Chico Antônio: sua ligação com o clássico-mor da nossa filmografia documental Cabra Marcado pra Morrer (Eduardo Coutinho, 1984). Chico Antônio começa depois do Cabra e termina antes. É todo realizado durante a montagem do Cabra, feita pelo próprio Escorel. São dois filmes de recuperação de trajetórias incompletas, de projetos passados inconclusos. São dois filmes sobre a irrecuperabilidade que o tempo sujeita as coisas, filmes que pairam invariavelmente sobre os eixos da memória e do esquecimento.

Dois filmes que transitam em dois tempos – e acabam criando um terceiro, paralelo, onde essa sujeição talvez não exista. Um sobre um filme inacabado, outro sobre um artista genial que não tem registro (o que aconteceu anos depois), que vai desaparecer na história: ambos usando o cinema como ferramenta de luta contra o imponderável poder do tempo.

O uso das ferramentas do cinema são um traço muito marcante em Chico Antônio. A experiência como montador fez de Escorel um exímio artesão das ferramentas do cinema (sem ignorar de forma nenhuma a contribuição do também mestre Mair Tavares). Não há nenhum cânone impeditivo, nenhum pudor em usar recursos de linguagens para contar esta história. Imagens de arquivo, material iconográfico, trilha sonora, narração em off (duas vozes), referências literárias, vídeo, tudo isso em função de estruturar essa narrativa, que pra mim é uma grande homenagem ao que o cinema tem pra nos oferecer. O filme tem um estilo híbrido, juntando o observacional, o documentário de montagem e ainda o desnudamento do verité. Trata-se de um compêndio dos mais completos das estratégias documentais.

Nós caminhamos junto com as imagens, do Rio Grande do Norte até São Paulo, que mostram a afirmação da linguagem do cinema sobre o espaço e o tempo. Pela turbina de avião, nos ligamos em segundos ao que os quilômetros tanto separam. Isso só foi possível com essa agilidade, essa comunicação, via uma ferramenta que marca profundamente esse filme e que até agora não foi totalmente digerida e usada com toda capacidade pelo cinema como um todo: o vídeo. Trata-se da aurora dessa nova tecnologia e ela tem profunda influência nos resultados que esse filme vai obter, e Escorel já tem total consciência disso.

O vídeo chegou pra oxigenar o cinema, e tirar um pouco do medo que o outro suporte trazia, o limite inerente à película. Sem desconsiderar traz um certo rigor que oxigena muito bem a era-vídeo. Chegou para dar ainda mais coragem de enfrentar o risco, o acaso, e esse é um filme que nasce do acaso, de um certo descompromisso que o vídeo proporciona. E esse descompromisso pode sim resultar num filme de estrutura profundamente rigorosa. A postura de renúncia das intenções do diretor em nome do que brota em suas lentes vai ao encontro do arquiteto das imagens e sua postura afirmativa de estruturação do material. Escorel consegue fazer com que essas duas posturas (antagônicas na história do documentário) convivam, coexistam, e se oxigenem.

Chico Antônio é um filme que muito me emociona e me alimenta por essas razões e também por algumas outras que não cabe aqui enumerar. Deixo então este testemunho muito mais emotivo que analítico porque é esse tipo de emoção que me aproxima do cinema, e acho que este é o documentário onde esse sentimento mais emana em nossa filmografia documental.

Lição de amor: cinema nos tempos da Embrafilme

por Rodrigo Cazes

Adaptação do romance de Mario de Andrade Amar, Verbo Intransitivo, Lição de Amor, realizado em 1975 por Eduardo Escorel, que foi o principal montador do Cinema Novo, tendo trabalhado, entre outros filmes, em: Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, também adaptação de Mario de Andrade, São-Bernardo (1971), de Leon Hirzsman, O Bravo Guerreiro (1969) de Gustavo Dahl, além de um filme-símbolo do movimento, Terra em Transe (1967), de Glauber rocha. Já vivíamos, em 1975, os tempos da Embrafilme, estatal criada para cuidar dos interesses do cinema nacional nos setores de distribuição e produção, bem na vertente dos preceitos que o “milagre econômico” patrocinado pela ditadura militar pregava. O cinema brasileiro levava multidões às salas de exibição mas esse panorama não duraria por muito tempo, assim como todo o resto do “milagre”, até a estatal ser extinta em 1989 pelo então presidente Collor de Mello.

Em Lição de Amor temos um filme de encenação contida, de cunho psicológico-realista bem, apegado à narrativa clássica. Nesse sentido o filme de Escorel se aproxima menos do sentido de “cinema moderno”, conforme definido por André Bazin. Lição de Amor é um produto típico do “cinemão” que a Embrafilme pretendia realizar no Brasil, com uma preocupação muito forte na comunicação com o público.

O roteiro de Eduardo Escorel e Eduardo Coutinho (o mesmo que agora é famoso por seus excelentes documentários) modifica um pouco o foco do livro de Mário. Não haveria mais sentido em fazer uma crítica ao moralismo de uma família burguesa em 1975, quando vários tabus já haviam sido derrubados. Temos mais um drama de natureza psicológica investigando as transformações na vida da família Souza Campos após a chegada da governanta, principalmente no filho Carlos, em sua relação com Elza. O filme também possui uma componente sexual muito mais explícita do que o livro de Mário, o que era uma constante nos filmes brasileiros do período, por vários fatores. Na época não havia nu na televisão brasileira e nem existiam aparelhos de vídeo-cassete caseiros. O cinema acabava sendo uma fonte de escoamento para atender a demanda por esse tipo de representação.

O livro de Mário de Andrade já contém elementos de composição cinematográfica em seu texto, temos uma estruturação por cenas, sem capítulos, como era a norma dos romances tradicionais e essas cenas vão sendo cortadas de uma para outra, sem uma marca indicativa no texto, como em um filme. Sem dúvida a paixão de Mário pelo cinema, na época um signo de modernidade, uma arte identificada com a contemporaneidade e os artistas de vanguarda, influenciou esse aspecto da composição do livro. Outro aspecto que influenciou o livro de Mário foi o expressionismo alemão.

No filme de Eduardo Escorel toda essa influência expressionista foi retirada, em prol de um realismo mais adequado aos propósitos comerciais que o filme tinha.

Recomeçar. Recomeçar novamente

por Pedro Ferreira

Considerado por muitos críticos como uma das obras mais importantes da história do cinema brasileiro, São Paulo S.A., primeiro longa-metragem do diretor Luiz Sérgio Person, é também a obra mais marcante do cinema paulista. Após formar-se no Centro Sperimentale di Cinematografia, na Itália, Person volta ao Brasil e faz o seu primeiro filme: uma mistura entre auto-biografia e um retrato realista da época que vivia a cidade de São Paulo, com o boom industrial automobilístico e a chegada de diversas multinacionais estrangeiras à cidade urbana. Acima de tudo, São Paulo S.A. é uma obra que, apesar de almejar espelhar um período, por seu caráter íntimo ao personagem Carlos, alter-ego do autor, consegue sobreviver falando de um tema que vai muito além daqueles tempos. Um tema que invade a psicologia-social e narra como o pensamento individual forma o coletivo, e como este mesmo coletivo pressiona o individual. É este lado do filme que mais me atinge.

A sequência inicial é antológica: a fusão de imagens da cidade de São Paulo com seus grandes prédios comerciais vistos de baixo como titãs sobre uma massa de pessoas que caminham apressadas ao som lírico de um coro. Esta cena espelha uma urbanização e um senso de modernidade, e cria um estranhamento da cidade que remete ao sentimento que temos de São Paulo pelo resto do filme. Dentre esta massa está o protagonista Carlos, um jovem e competente gerente de uma empresa automobilística, o primeiro indivíduo ao qual somos apresentados.

Os personagens são emblemáticos. Carlos é construído através de experiências pessoais do autor com um pensamento esteriotipado médio da época. Como ele, Person também trabalhou em uma empresa automobilística antes de se tornar cineasta. Segundo o próprio diretor, Carlos é o que ele poderia ter sido. As situações de vida são tão semelhantes que Person admite que algumas cenas (por exemplo, quando Carlos vai bêbado gritar à porta da casa de Luciana no reveillon) realmente ocorreram.

Por outro lado, temos Carlos, um cidadão que vive um forte dilema ético: tornar-se um homem rico comum, utilizando de sua capacidade e explorando trabalhadores, ou escapar daquela vida que ele tanto repudia. Cria-se um conflito interior do personagem que, apesar de ainda ter uma consciência crítica quanto às suas atitudes e a daqueles que o rodeiam, ainda vive preso à facilidade daquela vida, a única vida que conhece (Um dilema ético que muitas vezes se aproxima ao dilema ético vivido pelo poeta Paulo Martins em Terra em Transe). Seus motivos às vezes nos permanecem obscuros por seu humor negro quanto à própria condição, às vezes em tom de cinismo, às vezes de lamúria. Se sente tanto nojo daquela vida, por que não muda? Esta pergunta parece nos perseguir pelo filme inteiro e, se uma resposta não nos é dada, pelo menos uma indicação desponta no final do filme. Não importa para onde Carlos vá, ou que espécie de revolta repentina ele sinta, ele sempre retornará a São Paulo. Carlos, contudo, não é apenas uma presa da capital financeira do país. Seus ideais são paradoxais, certas vezes irresponsáveis e inconseqüentes, outras vezes engajados e auto-críticos. Seu bom senso, porém, é na maioria das vezes oculto por seu individualismo, capaz de uma preocupação inativa com a opressão operária, mas incapaz de perder um minuto ouvindo a súplica de sua amiga Hilda e impedir que ela se suicide.

Os demais personagens também são próprios da ambíguidade social daquela mesma atmosfera urbanizada. São concomitantemente opressores e oprimidos em cada quadro composto pelo autor, ora imersos na profundidade da competição econômica desvairada, ora justificando sua posição de inconsciente pilar desta esfera. Arturo, por exempo, não é o antagonista do filme. Está abalroado a este São Paulo que lhe corrompe e por ele é corrompido. Além disso, Arturo é um estrangeiro, manifestação da abertura da cidade para empresas multinacionais. Da mesma forma, Luciana vive as ânsias culturais de uma família que mistura tradicionalismo e inovação, conceitos antigos e ruptura. Ainda temos Ana, representação do erotismo feminino, a tentação de Carlos, a tentação de se tornar um milionário da corrupção como Arturo.

Neste filme, Luís Sérgio Person já se mostra um cineasta em contra-mão, característica marcante pelo resto de sua carreira. Apesar de ter alguns pontos de encontro com o Cinema Novo, como o realismo e a crítica social, ele foge da seca do nordeste ou das favelas e vai para centros urbanos, retratando um estilo de vida da classe média paulistana. Não me parece buscar a revolução por parte do povo, mas a conscientização quanto à inércia de muitos cidadãos médios que, como Carlos, vivem atracados às corrupções da vida urbana. Por último, não quer reinventar o cinema, preocupando-se mais com a comunicação com o público através de linguagens já consagradas.

Em São Paulo S.A., Person aborda a sociologia do geral através do cotidiano, sempre contrapondo a consciência do personagem com suas atitudes perante a vida. O que mais me toca neste filme é como a hipocrisia de um homem torna-o incapaz de romper o ciclo de recomeços, deste modo cedendo e criando uma sociedade que está sempre a pressionar o indivíduo para que corrobore e participe com suas problemáticas. Este é Carlos, o hipócrita afundado, o coitado vilão, a covarde vítima, e através dele, Person grita à cidade de São Paulo: “É isso que eu seria se pensasse como vocês.”

Marina Person - Entrevista

Encontramos Marina Person na abertura do XI Festival Brasileiro de Cinema Universitério, dia 30 de maio de 2006, no Centro Cultural dos Correios, no Centro do Rio de Janeiro. A mostra, que neste ano homenageia Luiz Sérgio, passará todos os filmes do cineasta. Person, filme dela sobre o pai, em sessão exclusiva, tinha acabado há pouco. Luzes acesas, à beira do palco, cortada por amigos que vinham com elogios e convites ao coquetel, e muito solícita, a diretora nos concedeu cinco minutos de conversa, que se transcrevem a seguir:

CPB: O filme é um depoimento emocionado sobre a história do seu pai, sobre a ausência do seu pai... Como você mistura um depoimento e ao mesmo tempo uma espécie de guia para os filmes dele?
É, na verdade o filme reflete bem o que foi o processo, né, uma viagem pessoal de descoberta tanto da obra dele quanto da pessoa: o Person pai, o Person marido, o Person diretor. Então o quê que era, quem era ele? Na verdade a busca é essa: Quem é o meu pai? Quem é essa pessoa, que é meu pai, que todo mundo fala tanto e eu mal tive contato. É isso: uma viagem pessoal, intimista, de descobertas.
Tive que tentar dosar, para não ficar uma coisa muito pessoal, aproveitando que ele trem um trabalho, que ele tem uma obra, uma trajetória como cineasta. E dar uma pincelada até na história do cinema brasileiro, também.

CPB: Como era a relação dele (Person) com os filmes dele, no dia-a-dia?
Acho que ele tinha uma coisa muito livre de falar. É o que tá no filme. Pode fazer um filme como São Paulo e como os Naves e aí se divertir e fazer uma comédia como Cassi Jones. Ele tinha uma coisa assim de querer falar para muita gente, atingir o público, ele achava que o cinema era isso. Era um espetáculo que tinha que ser visto por muita gente. Era um bom comunicador, em todos os sentidos.

CPB: Isso te influenciou na sua escolha profissional?
Com certeza. Com certeza eu fui fazer cinema porque desde criança eu tive contato com cinema, sempre gostei muito, achava demais, achava mágico, até hoje. O cinema tem isso, esse poder de transportar mundos pra lá e pra cá e trazer épocas de volta, e viver coisas que você não viveu, acho o cinema isso: mágico. Muito poderoso.

CPB: A gente está percebendo, lá na PUC a tese da Cândida, você lançando o documentário, o cineclube, o festival homenageando o Person... que parece que está voltando...
A idéia é essa, que a gente consiga trazer, pelo menos para mim. É um pouco isso, é superimportante isso estar acontecendo aqui no Rio, porque o papai sempre ficou muito reconhecido em São Paulo e aqui no Rio sempre foi uma coisa mais difícil, né. Então, acho que é até uma coincidência, mas é demais.

CPB: E ele ficou um pouco isolado, né, naquele contexto no Cinema Novo...
É, ele não pertencia a nenhum grupo, assim. Sempre foi um cineasta totalmente independente, sempre fez as coisas dele sem se preocupar se ele tava fazendo de acordo com um ou outro grupo, ele sempre... é isso, ele fazia o cinema que ele queria. Agradasse a quem agradasse.

CPB: Qual o seu filme preferido?
São Paulo S/A.

Marcelo Tavela: Você mostra os trabalhos dele mas é um filme muito pessoal, porque ele era seu pai. Você teve que se expor muito, e a sua mãe, a sua irmã. Como é que funciona essa coisa?
É, essa parte foi difícil, ainda mais com ela. Porque de repente eu cheguei e Ah, quero fazer um filme sobre o papai. Esse filme incluía muita gente que tinha que topar, senão não rolava, não tinha filme. E elas toparam. É duro, foi duro para a gente. Minha irmã, minha irmã era muito nova também quando ele morreu, mas acho que minha mãe sentiu mais, assim.

CPB: Você ficou satisfeita com o resultado final, achou que ficou bem dosado?
Achei. Achei que ficou um equilíbrio bem bacana. Óbvio que cada vez que eu vejo eu que Ah, faltou tal coisa. Mas é assim, se deixarem você fica mexendo até o resto da vida, né, então... Hoje vi aqueles comerciais que o Aleques telecinou lá e falei Ah, isso aí podia estar no filme...

CPB: Como é que tá pra lançar o filme?
Vou lançar em algum festival antes. Festival de Brasília, Gramado, não sei. acho que Brasília e depois vou lançar comercialmente.

Person na contramão

por Cândida Maria Monteiro*

Luiz Sergio Person passa rápido pela cena cultural brasileira. Ator, publicitário, diretor de TV, produtor e diretor de teatro e cinema. No início dos anos 60, Person estuda cinema em Roma, no conceituado Centro Sperimentale, onde entra em contato com o cinema moderno europeu, o Neo-realismo e a Nouvelle-Vague, e com o cinema independente americano. Durante esse período, trabalha como assistente de diretores importantes, como Luigi Zampa, dirige três curtas (Alladro, L’ottimista sorridente e Il Palazzo Doria Pamphilj), representa o cinema italiano nos Festivais de Veneza e de Bilbao e conquista prêmios. De volta ao Brasil, estréia na direção de longa-metragem com São Paulo S.A. (1965), que se torna um marco na história do cinema brasileiro moderno.

Person projeta um drama totalmente novo nas telas brasileiras. Em São Paulo S.A. a câmera do cineasta aponta para a problemática da classe média urbana, também vítima do desenvolvimento econômico. De certa forma, esse enfoque coloca Person na contramão do movimento cinemanovista que até então retratara as contradições do homem simples; do cangaço no meio rural e da favela na cidade grande.

No segundo longa, O caso dos irmãos Naves (1967), Person realiza um filme arriscado. Através de uma alegoria política, o filme denuncia a tortura que vinha acontecendo no país em plena ditadura militar. Tendo realizado seus dois primeiros longas com um olhar socialmente comprometido, Person, em seguida, parte para a comédia. Produz e dirige em 1968 uma paródia do western, o longa Panca de valente e em 1972, o seu último filme, Cassi Jones, o magnífico sedutor, uma comédia pop carioca, que homenageia o teatro de revista, a chanchada e diversos gêneros do cinema nacional.

Polêmico, o cineasta faz questão de manter sua independência: " o Cinema Novo é um negócio magistral e ao mesmo tempo vazio." Sua posição contrária ao movimento hegemônico na década de 60 é sem dúvida relevante e enriquecedora para aquele momento, em que a dramaturgia brasileira ocupava o centro dos debates culturais. O diretor paulista destoava da opinião dominante no meio cinematográfico, por exemplo, ao cultuar desde o início, o cinema de Zé do Caixão, da Boca do Lixo, a chanchada de Oscarito e Violeta Ferraz, entre outras manifestações rechaçadas pelo grupo carioca.

Antes de completar 40 anos, há exatos 30 anos, Person morre em um acidente automobilístico, deixando uma breve mas importaníssima obra que merece ser (re)conhecida. E é justamente essa a proposta do CinePuc: resgatar o trabalho de um dos mais originais criadores do cinema brasileiro no ano em que se comemora 70 anos do seu nascimento.

*Candida Maria Monteiro é professora da PUC-Rio e autora da dissertação de mestrado Em busca de Luiz Sergio Person, um cineasta na contramão.

Walter Lima Jr - Entrevista parte II

Virou um inferno, um pesadelo. E o filme também não saía, né. Porque o filme não teve o certificado de exportação... uma série de coisas que a gente não conseguiu realizar.. E isso me levou em direção a televisão. E ao documentário, em primeiro lugar, e depois a televisão.O Na Boca da Noite é uma coisa também que não tinha mercado, apesar de a gente ter vendido aquilo para um distribuidora que tinha uns filmes de Maciste, sabe o que é Maciste? Aqueles caras marombeiros que derrubavam templos, aqueles ursos, Hércules, aqueles filmes, que existiam muito nessa época, entendeu? Era comum, toda hora tinha um filme de Maciste passando por aí. E eu vendi pra uma distribuidora que distribuía filmes de Maciste, atrelei a um programa duplo, pra pagar a obrigatoriedade. Então eu nunca vi um tostão daquilo ali. Eu vendia a preço fixo, que ninguém queria comprar. Aquilo não adiantou nada para mim.

Fabio: Eu não sei se é uma impressão muito pessoal, se você concorda. Você não acha que na Boca da Noite e alguns filmes que você fez lembram o cinema marginal, esteticamente. Não sei se você vê dessa forma, se você já ouviu essa comparação. Você faz os dois primeiros filmes mais ligados ali ao Cinema Novo, mas acho que aos poucos você vai se distanciando e abrindo para outros tipos de cinema.. não sei se é uma impressão só minha.Walter: Se você aproximar o Brasil Ano 200 e o Menino de Engenho.. o Brasil Ano 200 tem muito a ver com o Cinema Novo.

Fabio: Tem muito a ver? Eu acho que tem. Apesar de que esteticamente é um filme... Sabrina: Mais elaborado?É. Mas.. Você viu? Sabrina: Não, tenho que ver.Vou usar aqui uma expressão ao pé da letra: ele é um filme nos trilhos. Entendeu? Ele foi feito com carrinho, e coisa.. e quando eu fiz, as pessoas do Cinema Novo, os adeptos, fiéis e missionários, todos falavam: Pô, mas no carrinho? Não sei o quê. Esse negócio de câmera na mão, tudo tremido, isso é vagabundagem. (risos) Aliás, até hoje eu acho isso. Eu acho que eu não devo ver a câmera, eu como espectador. Não tenho que ficar olhando câmera. Eu to vendo uma história que a câmera tá contando. Não preciso ficar vendo ih, agora tremeu aqui... uma coisa interceptando minha atenção. Era essa a visão que eu tinha desses filmes do Cinema Novo. Continuo achando isso. Mas há um determinado momento em que você é engolfado pela precariedade, pela miséria. Você descobre que a miséria é parte da sua cultura. Entendeu? E isso.. talvez tenha sido isso o que aconteceu no caso da Boca da Noite. Diante de impossibilidades, e entendeu, eu e a possibilidade única de fazer: ó, tem uma câmera que tá parada aí, tem tantos negativos e pô, se vira! faz um filme. Um filme feito para a produção, não a produção para o filme. Entendeu? Não existia isso. A mordomia era zero. Então esse filme custou 20 hamburgueres, mais não sei quantos caldos de laranja, suco de laranja e três noites seguidas dentro de um banco. Depois de um dia lá fora, porque era um estado de espírito, que a gente tava vivendo, e o filme, acho que ele reflete isso. Quando eu acabei de fazer o filme, eu não pude terminar imediatamente, eu tava envolvido com coisas que meu irmão tava envolvido e eu acabei preso, e só vim a fazer o filme depois que saí ali do DOPS, da Polícia do Exército. Só fui pensar nisso, e aí inclusive mudar o nome do filme, porque ia virar um problema: o filme original ia se chamar "O Assalto", era exatamente o assalto ao banco. Porque os caras, o argumento que eles sempre vinham, nos interrogatórios, era.... Rolou um assalto a um banco? (risos). E eu dizia que não era bem isso, eu fiz um filme, um filme baseado na peça O Assalto. Porra, isso aí era mó complicação: Onde é que tá o negativo?! Ah, não sei onde é que tá.. entendeu? Eu to aqui, vou saber onde tá o negativo.. sei lá! Não tenho a menor idéia. Então... na hora eu meti esse título: Na Boca da Noite. Que de alguma forma era aquilo que a gente tava vivendo, acho que ficou mais forte até que O Assalto. Era uma noite interminável. Mas eu gosto desse filme. Eu acho que ele de alguma maneira me mostrou um dado que não era essa aproximação com o Cinema Marginal. Ele tem uma organização interna que não é caótica. Ele não apologiza o caos. Ele tem uma estrutura dramática, tem um discurso, tem um sentido. Os outros filmes eram na verdade a apologia do caos.Talvez a Lira do Delírio seja um filme que me aproxime mais disso, entendeu? Mas na verdade eu não sei nem até que ponto tem a ver, uma proximidade, porque eu nunca fui tão próximo assim desse...

Fabio: Nem das pessoas? WLJ: Não, eu tinha proximidade com algumas coisas, com algumas pessoas. Por exemplo: O Julio Bressane. Era uma pessoa que eu tinha conhecido e tinha levado pro cinema – foi meu assistente no Menino de Engenho. Então eu tinha contato com ele. Mas o cinema dele não era uma coisa que eu descobrisse alguma coisa ali que me interessasse a mais. Entendeu? Talvez o Rogério, do Bandido da Luz Vermelha, principalmente da Mulher de Todos. Mas aquele caos, não me dizia respeito. Aquele caos ali não me dizia respeito. O caos da Lira do Delírio é outro. O caos da Lira do Delírio ele já incorpora aí radicalmente a idéia do tempo. Radicalmente. Então ele reorganiza um sentimento que estava um pouco disperso, meio coberto nos outros filmes, mas agora ele radicaliza na montagem. E por outro lado, também, a idéia da Lira ela nasce de circunstâncias assim, muito distantes do cinema. Nasce da impossibilidade de se sentir pensante, livre, num país numa ditadura tão forte. Então os efeitos que isso causa são efeitos assim extremamente dolorosos, que atingem o teu comportamento. Você vai, de repente... Quando você descobre você está dependente, tá drogado, tá escapando. Seja marginal, seja herói. Esse tipo de coisa, a facilidade com que a insurreição se instala em você através dos artifícios dos mais vagos possíveis. Então você pegar um baseado e fumar passou a ter um sentido extraordinário, se você fosse pra praia e fizesse isso na cara de todo mundo. Então tinha um significado aquilo. E eu acho que a Lira do Delírio ela é um pouco a compreensão dessa esquizoidisse, entendeu? Eu acho que eu tava em farelos ali, em frangalhos, em pedaços, esse filme é um pouco isso. É tudo aquilo e o próprio cinema me ajudando a juntar os pedaços de mim mesmo, e das pessoas que eu vi em torno. É um pouco isso. Isso me aproximava daquele cinema marginal? Não sei. Não sei até que ponto. Até porque há um gosto de imagem que não é comum no cinema marginal, há um gosto ali que não é comum. Uma vez eu vi um cara, no Festival de Brasília. Veio um dos exegeses do Cinema Marginal e ele veio falar que a Lira era um filme marginal. E eu não falei nada, porque imediatamente pulou. Eu tava falando com o Sganzerla e o cara veio com esse papo. E o Geraldo Sganzerla esculhambou com o cara. Eu não falei nada, fiquei olhando aquilo. Dizia que o cara não sabia filmar. Esculhambou o cara e três gerações do cara. Partiu em defesa do filme usando esse tipo de argumento. Pra mim não era novidade o que ele tava falando. Eu fiquei ali ouvindo aquela história.Usando esse tipo de argumento, o que para mim não era uma novidade. Porque eu senti que o filme tinha claramente uma linguagem enquanto aqueles outros que eu vi não tinham linguagem nenhuma. Era uma atitude, era uma atitude. Vale a atitude, mas não é tão suficiente assim, quanto a linguagem. Eu acho que A Lira é um filme que lida com significantes. O tempo inteiro a disposição desses significantes, aparentemente sem significado. Mas ele é o cruzamento de vários significantes, da linguagem cinematográfica, mas sem uma proposição de significado imediato, a não ser que você for pro afetivo. Quer dizer, se cair no afetivo aquilo passa a fazer sentido. Então em nome do que aconteceu com a Anecy, o desaparecimento dela, aquilo passou a ser o significado e eu acho que, no momento em que o filme aparece, o próprio evento da morte de Anecy ele criou um significado para o filme que de alguma maneira ele enevoou o próprio filme. As pessoas viam uma coisa que na verdade o filme era, mas o filme é o jogo desses significados, desses significantes. Ele é, sobretudo, isso. Então, quando eu vi o filme fora do Brasil, isso foi visto assim imediatamente. A mim me chocou pensar que nunca ninguém tinha visto isso. Nunca ninguém tinha visto isso. Sempre me faltava isso, em relação ao filme. Aquilo que o filme... é um filme extremamente doloroso para mim. Então eu achava tão claro isso, e isso não era percebido, entendeu? Havia uma certa comoção extra-filme. E às vezes até tem ainda uns recalcitrantes que insistem nessa visão melodramática da coisa. Mas eu acho que hoje em dia o filme já se impõe por ele próprio. Ele é quase um documentário desse desbunde geral. Ele tem uma vitalidade e uma energia que é dele. E eu na Itália tive a oportunidade de conversar com um cara que tinha feito uma análise do filme muito interessante a respeito dessa coisa dos significantes, e que me explicou assim, de alguma maneira, uma coisa que eu aproveitei na minha compreensão até do Glauber. Ele falando a respeito de um outro filme que também convive com os significantes, mas aí como um tema, e não como mise en scène. Que é o filme do Kubrick chamado The Shining. O The Shining é um filme onde os significantes engolem o protagonista. De tal maneira ele é engolido que ele projeta no espaço todos os fantasmas e os personagens que estão dentro de um livro que não quer sair! Ele não consegue produzir o livro e a obra de arte começa a escapulir das páginas, pra um espaço onde ele teria vivido uma experiência anteriormente. Ou não.

Fabio: Ou não. (risos) E aí o cara, a respeito disso, falava assim. E eu comecei a achar que isso parecia a vida do Glauber. Fiquei achando assim, porque o Glauber foi um cara que os significantes engoliram ele. Ele não sabia mais concretizar, realizar plenamente as idéias, e ele foi desconstruindo, desconstruindo o que já não tinha mais o que desconstruir, entendeu? E que aquilo virou um estilo, uma maneira de ser, onde ele era o Apolo disso, dessa desconstrução permanente. Acabou fazendo um filme disso o tempo inteiro. Mas quem conheceu, quem conviveu com o Glauber, eu convivi e conheci bastante o Glauber, dentro de casa, muito perto. O Glauber não era uma pessoa que tivesse, vamos dizer assim, que fosse tão alheio à vontade de fazer um cinema narrativo. Muito pelo contrário. Ele queria fazer um cinema narrativo, só que ele não sabia. Entendeu? Ele não sabia. E a partir de determinado momento é que ele foi descoberto como a pessoa que preconizava um tipo de cinema. E ele acreditou! Ele acreditou, e pronto: engessou ele, e ele ficou vendendo aquele peixe permanentemente. Quer dizer, ele começou a criar significantes que não realizavam o sonho anterior dele. Então aquele espectador que nele havia também, ele matou. Matou o cara. E eu vi isso com ele: ele matou esse cara. O espectador que levou ele a fazer cinema, ele matou esse cara. Ele se impôs a esse cara, a essa figura assassinada por ele mesmo, dentro dele.

Walter Lima Jr - Entrevista parte I

No dia 9 de maio de 2005 nos reunimos, em uma sala do departamento de Comunicação da PUC, com o Walter Lima Jr. Éramos umas dez pessoas, organizadores e freqüentadores dos cineclubes, tendo o privilégio de ouvir, por cerca de duas horas, o professor falar sobre quase toda sua filmografia. Fabio: Tinha curiosidade de ouvir o Walter falar um pouco sobre cada um dos filmes. Como foi para você fazer, e o que você acha dos filmes hoje. Se você acha que eles são representativos de valores maiores que você tenta buscar na sua obra... Muita coisa?
Walter: Não sei. Não sei se eu faria tal como fiz o Menino de Engenho hoje, com aquela mesma visão, assim, que eu coloquei ali no filme, mas eu, no momento que eu fiz, ele é representativo do momento que eu fiz. No momento que eu fiz eu apostei tudo. E eu acho que apesar de que um dos filmes seja aparentemente diferente um dos outros, na minha cabeça eles são muito parecidos. Talvez apoiado um pouco na minha paixão pelo cinema. Talvez seja isso. Ou seja, eu me coloco assim muito empenhado quando eu tô fazendo. Eu não sei estabelecer uma diferença. Eu poderia tentar esse esforço grande de tentar fazer uma aproximação com a idéia do tempo, mas eu acho que isso é, sei lá, uma forçação de barra (tosse). Acho que de alguma maneira você sempre tem alguns traços de como você foi na tua meninice.Por mais velho que você fique, alguns traços ficam, e também no teu caráter, na tua forma de ver o mundo. Eu digo isso pelo seguinte: eu tenho assim na minha cabeça, por princípio, não sei se é um dogma, eu já comentei isso contigo. Eu acho o seguinte: quando você... o que me levou ao cinema para mim é uma coisa sagrada. O que me levou ao cinema, o meu olhar do primeiro filme que eu vi, quando eu me espantei com aquilo, é o porquê eu fui levado a fazer cinema. Esse olhar, essa pessoa eu tenho que preservar em mim, é o meu maior cúmplice. Essa pessoa. Essa pessoa que se apaixonou por aquilo. Só que há uma progressiva mudança, que o tempo, os eventos, as verdades, as velhices vão alterando na sua forma de perceber. Mas aquela pessoa lá atrás, esse apaixonado por aquilo, ele eu tento preservar de todas as maneiras, e colocar aquilo à disposição, no meu caso específico, naquilo que eu faço, colocar aquilo à disposição da equipe e dos atores. Essa pessoa é que acredita ou não na cena que fez. Na cena que eu fiz. É essa pessoa que me diz se eu acreditei ou não. E a minha função dentro do processo de realização é acreditar. Ou não. Se me perguntarem o quê que é um diretor de cinema: é aquele que organiza a cena, discute ou idealiza aquilo que vai fazer. Mas ele é essencialmente uma pessoa que acredita que aquilo é real. Que aquilo realmente aconteceu, ali, naquela hora que ele tá filmando, que aquilo tem um sabor de verdade. Isso é um dogma. Eu me apóio muito, então, nessa pessoa lá atrás que trouxe o cinema.Então, em vista disso, eu não tenho assim uma visão... crítica no sentido de aproximar um filme do outro, acho que isso nem é trabalho meu. Eu prefiro não ficar desmascarando esses filmes aos olhos desse primeiro espectador, entendeu? Quero que ele continue inocentemente acreditando nisso. Não fique desmascarando, desmontando, descascando, desconstruindo, to nem aí pra isso. Fabio: Mas não existe uma tentativa de... "intelectualizar", posteriormente, é isso?Eu vejo o Menino de Engenho muito assim, o Brasil infante. Sabe, o Brasil ainda no quintal, fazendo estripulias, acho que é um pouco isso, na minha cabeça. O Brasil da plantação de cana. Agora, ao mesmo tempo, o filme já começa a definir coisas que mais adiante vão virando uma espécie de obsessão, que eu não sei da onde vem, e que não me cabe explicar. Bem, uma delas é essa relação com o tempo. Existe isso, e é uma coisa obsessiva para mim. Não sei da onde vem isso, não sei nem se vêm do cinema. Eu não tenho um referencial disso. Me atrai essa idéia, eu acho que quando eu li aquele livro do Tarkovski, eu vi que era uma coisa, imediatamente, que bateu em mim de cara: esse cara definiu o cinema. Ou definiu a montagem, entendeu? A percepção que ele tem da estrutura, o cinema é muito isso, você poder brincar com o tempo. Claro que existe desde o momento que Griffith faz Intolerância ele brinca com o tempo: mistura Babilônia, um drama, né, e vida de Cristo e.. o diabo. Tudo isso ao mesmo tempo, tem esse jogo do ir e voltar, e poder também ao mesmo tempo imaginar que os tempos são paralelos e são informações que até procedem ao Griffith. Toda teoria da relatividade, por exemplo, é posterior ao Griffith. . E essa questão da relatividade do tempo nasce daí, exatamente, de como a gente convive com a possibilidade de tempos paralelos. Isso aí são coisas que você vai se abastecendo de filmes ou de livros, entendeu? Ou de ouvir ou de perceber, isso existe também na música, você vai convivendo e vai transformando aquilo num material que você julga ser seu. E passa a ser, a sua própria maneira. Então essa questão eu acho que já se anunciava ali, no Menino de Engenho. O fato de eu começar o filme daquela maneira... Eu, quando cheguei no engenho eu vi aquele plano.

Fabio: a seqüência começa e termina o filme, né..Exatamente, e eu pensei em mais coisas, é que eu não consegui realizar, porque não tinha os meios pra realizar. Eu achava que eu ia fazer travellings enormes, eu enchia o roteiro disso: travellings enormes, em lugares que ficavam totalmente abandoados, e depois cortava pra uma coisa que tava viva, naquele momento, o tempo inteiro. O roteiro do Menino de Engenho era cheio de coisas assim: de dois tempos. Eu quando fui lá eu tomei um susto, porque eu vi os locais. Mas aí por quê eu não pude realizar? Porque eu não tinha recursos pra realizar. Se entrasse numa casa de purgar, lugar onde se limpa o açúcar, é um lugar cheio daqueles tonéis, assim, uma coisa enorme, não tinha como iluminar aquilo. Eu pensei em tirar algumas telhas, mas aí era um lugar tombado, não sei o quê, não pode tocar. Você fica sem saber o que fazer e acaba que tá bom, isso aí eu não posso fazer, vou fazer outras coisas. Mas aquilo já me perseguia, entendeu? Acho que o olhar pras coisas muitas vezes te evoca para uma situação. Simplesmente olhar a decadência do engenho já me evocava a situação anterior. E isso foi se repetindo em outros filmes. Até mesmo no Brasil Ano 2000 isso se repetiu, apesar dessa coisa... Eu quando fiz Brasil Ano 2000... eu já em 64, 65, já tinha a idéia de fazer o Brasil Ano 2000. Quando eu fiz, em 67, eu tava falando usando um anacronismo querendo falar do passado. Eu tava falando do futuro querendo falar do passado. Pra mim o ano 2000 é o passado. Você não viu o filme? O filme é exatamente isso, é uma brincadeira. Eu filmei em Paraty, num lugar, antes de Paraty virar aquela disneylândia de paulista, entendeu?, quando eu filmei lá, ali era quase tudo ruína. Então era... Eu espalhei coisas pela cidade, assim: faixas. As pessoas passam, tem uns dizeres assim, umas pinturas na parede: Brasil ad infinitum, são coisas assim. Você olha um lugar assim bem velho, caindo aos pedaços, Brasil ad infinitum, entendeu? Coisas... e às vezes coisas que eu fico assim meio surpreso em como é que continuam acontecendo tal como caricaturalmente eu previ no filme. Uma delas a seguinte: o famoso foguete brasileiro que foi a pique lá em, lá em Alcântara, que jogaram um foguete, se empenharam todos eles pra poder lançar o foguete, chamaram os franceses e era uma tecnologia francesa, e o foguete dançou. É o filme! Como agora essa veneração desse cosmonauta brasileiro, também, dez milhões de dólares, sei lá quanto foi, entendeu, pra botar aquele homem ali, em nome de uma pesquisa científica, que a gente não sabe até hoje o quê que é a tal pesquisa, que o cara trouxe... E o cara fez umas coisas meio esquisitas.
Fabio: plantou feijão no algodão... (risos) Plantou feijão no algodão, levou uma camisa do Flamengo, sei lá, fez umas coisas esquisitas (risos) e foi pro espaço. E foi pra lá, fazendo... HEXA, sei lá, (risos) umas coisas esquisitas. Isso tudo, esse namoro com o futuro, entendeu?, esse namoro com o tempo, ‘O tempo vai resolver’, isso já tinha me batido no Brasil Ano 2000, que é um pouco essa brincadeira. Que as pessoas chegam no ano 2000 num lugar, numa base de foguetes e só que ali nesse lugar tem um serviço de educação do índio que os índios já acabaram, não existe mais índios, e o chefe do setor desse serviço ta apavorado, porque vem as autoridades ali, e ele não tem como justificar o seu próprio emprego, como burocrata, ele cheio de carimbo lá dentro, de papeis assim. Então ele contrata uma família, que é a família do filme, pra fazer papel de índio, pra ele, entendeu?, pra quando o general chegar... O Brasil foi um filme que ao mesmo tempo era assim um filme pretencioso, com relação ao que eu pensava naquele momento, e ao mesmo tempo muito desiludido, muito amargo, então de novo, no ano 2000, era o general que mandava, as pessoas não curtiram muito... as esquerdas. Viraram a cara para o filme.Viraram a cara pro filme. O filme só não despertou maior ira por duas coisas: uma porque ele saiu do Brasil, foi pro Festival de Berlim e ganhou um prêmio em Berlim, e aí as pessoas ficaram sem saber dizer por quê que ganhou um prêmio em Berlim. Aí eu também não sei, enfim... As pessoas ficaram meio de mãos atadas, sem saber; e pelo fato de quando o filme passou, o filme causou uma irritação muito grande na direita. Os cinemas, eles eram exibidos em São Paulo e o cinema foi apedrejado, é... entraram umas pessoas com umas motocicletas, os caras desses comandos de caça aos comunistas, e entraram com motocicleta, quebraram os estandes do filme, jogaram pedra no cinema. Em 68. Já tinha, enfim, em 68 ele ficou pronto. Ele foi censurado uns quinze dias antes do Ato 5. Aí não se voltou a censurar o filme, e ninguém pegou o filme aí ele foi pro Festival de Berlim, e com aquele prêmio eu consegui uma exibição em São Paulo, contra a vontade dos distribuidores, que éramos nós mesmos, éramos uma cooperativa de distribuição, chamada Difilme, que depois acabou, infelizmente, então essa cooperativa não ia lançar o filme, mas eu vi que era hora de lançar o filme, se não eu não lançaria o filme. Eu já senti que tinha uma coisa estranha. Aí o filme foi lançado em São Paulo e aí depois dessa irritação ele foi chamado de volta à censura. Aí levou um ano e meio pra sair da censura e quando saiu, saiu todo estrupiado, todo cortado. Só em 1970 ele voltou a ser exibido aqui no Rio de Janeiro, e na ocasião que ele foi exibido eu tava preso no DOPS. Então todos esses fatores..
Fabio: Você chegou a ver o filme cortado?Não, eu não vi, eu mandei a cópia, eu cortei na cópia. Cortei na cópia. Mandei os pedaços do filme das cópias, não mandei o negativo, mandei os pedaços do filme e obtive um certificado de censura. As cópias do filme até pouco tempo você tinha acesso às cópias do filme absolutamente intactas. Nunca foi exibido. Foi exibido durante poucos dias no Rio de Janeiro. De alguma maneira esse prêmio em Berlin, essa prisão, essa reação da extrema-direita, deixou o filme assim meio defendido. O quê que esse filme é? É um filme assim ou assado? É daqui ou de lá? Essas polarizações que existem muito nas esquerdas aqui, então de repente você não sabia direito o que aquilo era. Entendeu? Se era assim tão pessimista em relação ao futuro do Brasil, era muito isso. E o filme foi retirado de cartaz e ficou retirado. Até que um dia ele passou na TV Educativa, vinte e tantos anos depois passou na TV Educativa. Vinte e tantos anos depois? É, por aí. Deve ter sido mil novecentos e oitenta e poucos que passou na TV Educativa, quase trinta anos depois. E ninguém sabia nem da existência daquele filme.
Fabio: Acho que é um dos filmes seus mais difíceis de conseguir
É, as pessoas não se relacionaram com aquilo. Mas eu durante algum tempo eu amarguei o fato de ter feito o filme e de ter pego dinheiro em banco pra fazer o filme. Isso aí foi trágico, porque você tem pagar quando você pega dinheiro em banco. E você para pagar.. Isso não foi uma coisa boa. Foi totalmente o contrário do que aconteceu no Menino de Engenho, que teve uma aproximação com o publico muito forte, deu muito dinheiro, me ajudou a produzir o Brasil Ano 2000.
Fabio: Foi o maior sucesso seu de público?
Po, deu muito dinheiro, anos. Botei dinheiro até em Terra em Transe, do Menino de Engenho. E no próprio Brasil Ano 2000, que foi feito antes. Não, que foi feito depois de Terra em Transe. Eu acho que os anos 70.. eu fui fazer um filme um pouco com a idéia de... Depois, fui fazer um filme, o Na Boca da Noite, com a idéia de que.. fazendo com custo zero, com quase custo nenhum, eu ia conseguir atrelar aquele filme a um filme estrangeiro, vender como programa duplo e tentar criar uma forma de ajudar a pagar o filme, né.. o Brasil Ano 2000. Pra ter uma idéia, eu fui peguei dois ou três financiamentos de banco, um financiamento de cada banco, e no final eu tinha onze bancos diferentes, que eu pegava dinheiro desse pra pagar aquele, já não sabia o que fazer.