Aos que nos mostraram o caminho

por Juliano Gomes

Acho interessante começar pelo que me parece, e que, acima de tudo, sinto como o mais essencial. Chico Antônio: o Herói com Caráter é um filme que me emociona profundamente desde o primeiro contato, nas aulas do José Mariani, de Teoria da Imagem, há alguns anos trás. E o objetivo disso aqui é um pouco esmiuçar as origens do encantamento, que nasce de vários lados e que, de certa forma, encontro alguma coerência nisso, pois trata-se de um filme que brota essencialmente de encantamento, de arrebatamento.

Chico Antônio nasce para Eduardo Escorel numa conversa de bar com amigos. E uma fatalidade iria levar um dos seus amigos que trouxeram o assunto naquele chopp em Copacabana. Começava aí mais um capítulo da luta contra o tempo que marca toda a história desse filme, e também a história do documentário.

Chico Antônio exala um profundo desejo de preservação, de recuperação, de imortalidade que o cinema tem na mesma medida que não tem. O cinema é o meio morto-vivo por excelência. A sensação de presença é real, porém o que vemos está irrecuperavelmente perdido no tempo. A experiência está perdida. E o encantamento com a experiência nos leva ao cinema. A batalha perdida nos leva ao front.

Me parece que esse apego à experiência, à brutalidade (no sentido mais terno possível) dela, é o que fez Mário de Andrade tecer seu Turista Aprendiz, e o que fez Escorel realizar seu Chico Antônio. E isso vai trazer alguns traços que são marcos no documentário brasileiro. O encontro inicial do documentarista com seu personagem, o encontro da equipe no seu mergulho no acaso com seu cantador é talvez a imagem que mais me marca a memória. O filme que articula esses múltiplos encontros no tempo, marca terreno ao tratar desse assunto, assumindo-o como um dos eixos principais dessa obra – é interessante notar que os textos de Mário de Andrade são ouvidos pela voz do diretor e os textos escritos pelo diretor estão na voz de outro narrador, no caso, Ferreira Gullar. E essa imagem-encontro certamente é o ponto-chave da obra do maior documentarista brasileiro, e esse traço se desenhava naqueles tempos desesperançosos da virada dos 70 pros 80.

Daí brota outro eixo importantíssimo em Chico Antônio: sua ligação com o clássico-mor da nossa filmografia documental Cabra Marcado pra Morrer (Eduardo Coutinho, 1984). Chico Antônio começa depois do Cabra e termina antes. É todo realizado durante a montagem do Cabra, feita pelo próprio Escorel. São dois filmes de recuperação de trajetórias incompletas, de projetos passados inconclusos. São dois filmes sobre a irrecuperabilidade que o tempo sujeita as coisas, filmes que pairam invariavelmente sobre os eixos da memória e do esquecimento.

Dois filmes que transitam em dois tempos – e acabam criando um terceiro, paralelo, onde essa sujeição talvez não exista. Um sobre um filme inacabado, outro sobre um artista genial que não tem registro (o que aconteceu anos depois), que vai desaparecer na história: ambos usando o cinema como ferramenta de luta contra o imponderável poder do tempo.

O uso das ferramentas do cinema são um traço muito marcante em Chico Antônio. A experiência como montador fez de Escorel um exímio artesão das ferramentas do cinema (sem ignorar de forma nenhuma a contribuição do também mestre Mair Tavares). Não há nenhum cânone impeditivo, nenhum pudor em usar recursos de linguagens para contar esta história. Imagens de arquivo, material iconográfico, trilha sonora, narração em off (duas vozes), referências literárias, vídeo, tudo isso em função de estruturar essa narrativa, que pra mim é uma grande homenagem ao que o cinema tem pra nos oferecer. O filme tem um estilo híbrido, juntando o observacional, o documentário de montagem e ainda o desnudamento do verité. Trata-se de um compêndio dos mais completos das estratégias documentais.

Nós caminhamos junto com as imagens, do Rio Grande do Norte até São Paulo, que mostram a afirmação da linguagem do cinema sobre o espaço e o tempo. Pela turbina de avião, nos ligamos em segundos ao que os quilômetros tanto separam. Isso só foi possível com essa agilidade, essa comunicação, via uma ferramenta que marca profundamente esse filme e que até agora não foi totalmente digerida e usada com toda capacidade pelo cinema como um todo: o vídeo. Trata-se da aurora dessa nova tecnologia e ela tem profunda influência nos resultados que esse filme vai obter, e Escorel já tem total consciência disso.

O vídeo chegou pra oxigenar o cinema, e tirar um pouco do medo que o outro suporte trazia, o limite inerente à película. Sem desconsiderar traz um certo rigor que oxigena muito bem a era-vídeo. Chegou para dar ainda mais coragem de enfrentar o risco, o acaso, e esse é um filme que nasce do acaso, de um certo descompromisso que o vídeo proporciona. E esse descompromisso pode sim resultar num filme de estrutura profundamente rigorosa. A postura de renúncia das intenções do diretor em nome do que brota em suas lentes vai ao encontro do arquiteto das imagens e sua postura afirmativa de estruturação do material. Escorel consegue fazer com que essas duas posturas (antagônicas na história do documentário) convivam, coexistam, e se oxigenem.

Chico Antônio é um filme que muito me emociona e me alimenta por essas razões e também por algumas outras que não cabe aqui enumerar. Deixo então este testemunho muito mais emotivo que analítico porque é esse tipo de emoção que me aproxima do cinema, e acho que este é o documentário onde esse sentimento mais emana em nossa filmografia documental.

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