Recomeçar. Recomeçar novamente

por Pedro Ferreira

Considerado por muitos críticos como uma das obras mais importantes da história do cinema brasileiro, São Paulo S.A., primeiro longa-metragem do diretor Luiz Sérgio Person, é também a obra mais marcante do cinema paulista. Após formar-se no Centro Sperimentale di Cinematografia, na Itália, Person volta ao Brasil e faz o seu primeiro filme: uma mistura entre auto-biografia e um retrato realista da época que vivia a cidade de São Paulo, com o boom industrial automobilístico e a chegada de diversas multinacionais estrangeiras à cidade urbana. Acima de tudo, São Paulo S.A. é uma obra que, apesar de almejar espelhar um período, por seu caráter íntimo ao personagem Carlos, alter-ego do autor, consegue sobreviver falando de um tema que vai muito além daqueles tempos. Um tema que invade a psicologia-social e narra como o pensamento individual forma o coletivo, e como este mesmo coletivo pressiona o individual. É este lado do filme que mais me atinge.

A sequência inicial é antológica: a fusão de imagens da cidade de São Paulo com seus grandes prédios comerciais vistos de baixo como titãs sobre uma massa de pessoas que caminham apressadas ao som lírico de um coro. Esta cena espelha uma urbanização e um senso de modernidade, e cria um estranhamento da cidade que remete ao sentimento que temos de São Paulo pelo resto do filme. Dentre esta massa está o protagonista Carlos, um jovem e competente gerente de uma empresa automobilística, o primeiro indivíduo ao qual somos apresentados.

Os personagens são emblemáticos. Carlos é construído através de experiências pessoais do autor com um pensamento esteriotipado médio da época. Como ele, Person também trabalhou em uma empresa automobilística antes de se tornar cineasta. Segundo o próprio diretor, Carlos é o que ele poderia ter sido. As situações de vida são tão semelhantes que Person admite que algumas cenas (por exemplo, quando Carlos vai bêbado gritar à porta da casa de Luciana no reveillon) realmente ocorreram.

Por outro lado, temos Carlos, um cidadão que vive um forte dilema ético: tornar-se um homem rico comum, utilizando de sua capacidade e explorando trabalhadores, ou escapar daquela vida que ele tanto repudia. Cria-se um conflito interior do personagem que, apesar de ainda ter uma consciência crítica quanto às suas atitudes e a daqueles que o rodeiam, ainda vive preso à facilidade daquela vida, a única vida que conhece (Um dilema ético que muitas vezes se aproxima ao dilema ético vivido pelo poeta Paulo Martins em Terra em Transe). Seus motivos às vezes nos permanecem obscuros por seu humor negro quanto à própria condição, às vezes em tom de cinismo, às vezes de lamúria. Se sente tanto nojo daquela vida, por que não muda? Esta pergunta parece nos perseguir pelo filme inteiro e, se uma resposta não nos é dada, pelo menos uma indicação desponta no final do filme. Não importa para onde Carlos vá, ou que espécie de revolta repentina ele sinta, ele sempre retornará a São Paulo. Carlos, contudo, não é apenas uma presa da capital financeira do país. Seus ideais são paradoxais, certas vezes irresponsáveis e inconseqüentes, outras vezes engajados e auto-críticos. Seu bom senso, porém, é na maioria das vezes oculto por seu individualismo, capaz de uma preocupação inativa com a opressão operária, mas incapaz de perder um minuto ouvindo a súplica de sua amiga Hilda e impedir que ela se suicide.

Os demais personagens também são próprios da ambíguidade social daquela mesma atmosfera urbanizada. São concomitantemente opressores e oprimidos em cada quadro composto pelo autor, ora imersos na profundidade da competição econômica desvairada, ora justificando sua posição de inconsciente pilar desta esfera. Arturo, por exempo, não é o antagonista do filme. Está abalroado a este São Paulo que lhe corrompe e por ele é corrompido. Além disso, Arturo é um estrangeiro, manifestação da abertura da cidade para empresas multinacionais. Da mesma forma, Luciana vive as ânsias culturais de uma família que mistura tradicionalismo e inovação, conceitos antigos e ruptura. Ainda temos Ana, representação do erotismo feminino, a tentação de Carlos, a tentação de se tornar um milionário da corrupção como Arturo.

Neste filme, Luís Sérgio Person já se mostra um cineasta em contra-mão, característica marcante pelo resto de sua carreira. Apesar de ter alguns pontos de encontro com o Cinema Novo, como o realismo e a crítica social, ele foge da seca do nordeste ou das favelas e vai para centros urbanos, retratando um estilo de vida da classe média paulistana. Não me parece buscar a revolução por parte do povo, mas a conscientização quanto à inércia de muitos cidadãos médios que, como Carlos, vivem atracados às corrupções da vida urbana. Por último, não quer reinventar o cinema, preocupando-se mais com a comunicação com o público através de linguagens já consagradas.

Em São Paulo S.A., Person aborda a sociologia do geral através do cotidiano, sempre contrapondo a consciência do personagem com suas atitudes perante a vida. O que mais me toca neste filme é como a hipocrisia de um homem torna-o incapaz de romper o ciclo de recomeços, deste modo cedendo e criando uma sociedade que está sempre a pressionar o indivíduo para que corrobore e participe com suas problemáticas. Este é Carlos, o hipócrita afundado, o coitado vilão, a covarde vítima, e através dele, Person grita à cidade de São Paulo: “É isso que eu seria se pensasse como vocês.”

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