Walter Lima Jr - Entrevista parte I

No dia 9 de maio de 2005 nos reunimos, em uma sala do departamento de Comunicação da PUC, com o Walter Lima Jr. Éramos umas dez pessoas, organizadores e freqüentadores dos cineclubes, tendo o privilégio de ouvir, por cerca de duas horas, o professor falar sobre quase toda sua filmografia. Fabio: Tinha curiosidade de ouvir o Walter falar um pouco sobre cada um dos filmes. Como foi para você fazer, e o que você acha dos filmes hoje. Se você acha que eles são representativos de valores maiores que você tenta buscar na sua obra... Muita coisa?
Walter: Não sei. Não sei se eu faria tal como fiz o Menino de Engenho hoje, com aquela mesma visão, assim, que eu coloquei ali no filme, mas eu, no momento que eu fiz, ele é representativo do momento que eu fiz. No momento que eu fiz eu apostei tudo. E eu acho que apesar de que um dos filmes seja aparentemente diferente um dos outros, na minha cabeça eles são muito parecidos. Talvez apoiado um pouco na minha paixão pelo cinema. Talvez seja isso. Ou seja, eu me coloco assim muito empenhado quando eu tô fazendo. Eu não sei estabelecer uma diferença. Eu poderia tentar esse esforço grande de tentar fazer uma aproximação com a idéia do tempo, mas eu acho que isso é, sei lá, uma forçação de barra (tosse). Acho que de alguma maneira você sempre tem alguns traços de como você foi na tua meninice.Por mais velho que você fique, alguns traços ficam, e também no teu caráter, na tua forma de ver o mundo. Eu digo isso pelo seguinte: eu tenho assim na minha cabeça, por princípio, não sei se é um dogma, eu já comentei isso contigo. Eu acho o seguinte: quando você... o que me levou ao cinema para mim é uma coisa sagrada. O que me levou ao cinema, o meu olhar do primeiro filme que eu vi, quando eu me espantei com aquilo, é o porquê eu fui levado a fazer cinema. Esse olhar, essa pessoa eu tenho que preservar em mim, é o meu maior cúmplice. Essa pessoa. Essa pessoa que se apaixonou por aquilo. Só que há uma progressiva mudança, que o tempo, os eventos, as verdades, as velhices vão alterando na sua forma de perceber. Mas aquela pessoa lá atrás, esse apaixonado por aquilo, ele eu tento preservar de todas as maneiras, e colocar aquilo à disposição, no meu caso específico, naquilo que eu faço, colocar aquilo à disposição da equipe e dos atores. Essa pessoa é que acredita ou não na cena que fez. Na cena que eu fiz. É essa pessoa que me diz se eu acreditei ou não. E a minha função dentro do processo de realização é acreditar. Ou não. Se me perguntarem o quê que é um diretor de cinema: é aquele que organiza a cena, discute ou idealiza aquilo que vai fazer. Mas ele é essencialmente uma pessoa que acredita que aquilo é real. Que aquilo realmente aconteceu, ali, naquela hora que ele tá filmando, que aquilo tem um sabor de verdade. Isso é um dogma. Eu me apóio muito, então, nessa pessoa lá atrás que trouxe o cinema.Então, em vista disso, eu não tenho assim uma visão... crítica no sentido de aproximar um filme do outro, acho que isso nem é trabalho meu. Eu prefiro não ficar desmascarando esses filmes aos olhos desse primeiro espectador, entendeu? Quero que ele continue inocentemente acreditando nisso. Não fique desmascarando, desmontando, descascando, desconstruindo, to nem aí pra isso. Fabio: Mas não existe uma tentativa de... "intelectualizar", posteriormente, é isso?Eu vejo o Menino de Engenho muito assim, o Brasil infante. Sabe, o Brasil ainda no quintal, fazendo estripulias, acho que é um pouco isso, na minha cabeça. O Brasil da plantação de cana. Agora, ao mesmo tempo, o filme já começa a definir coisas que mais adiante vão virando uma espécie de obsessão, que eu não sei da onde vem, e que não me cabe explicar. Bem, uma delas é essa relação com o tempo. Existe isso, e é uma coisa obsessiva para mim. Não sei da onde vem isso, não sei nem se vêm do cinema. Eu não tenho um referencial disso. Me atrai essa idéia, eu acho que quando eu li aquele livro do Tarkovski, eu vi que era uma coisa, imediatamente, que bateu em mim de cara: esse cara definiu o cinema. Ou definiu a montagem, entendeu? A percepção que ele tem da estrutura, o cinema é muito isso, você poder brincar com o tempo. Claro que existe desde o momento que Griffith faz Intolerância ele brinca com o tempo: mistura Babilônia, um drama, né, e vida de Cristo e.. o diabo. Tudo isso ao mesmo tempo, tem esse jogo do ir e voltar, e poder também ao mesmo tempo imaginar que os tempos são paralelos e são informações que até procedem ao Griffith. Toda teoria da relatividade, por exemplo, é posterior ao Griffith. . E essa questão da relatividade do tempo nasce daí, exatamente, de como a gente convive com a possibilidade de tempos paralelos. Isso aí são coisas que você vai se abastecendo de filmes ou de livros, entendeu? Ou de ouvir ou de perceber, isso existe também na música, você vai convivendo e vai transformando aquilo num material que você julga ser seu. E passa a ser, a sua própria maneira. Então essa questão eu acho que já se anunciava ali, no Menino de Engenho. O fato de eu começar o filme daquela maneira... Eu, quando cheguei no engenho eu vi aquele plano.

Fabio: a seqüência começa e termina o filme, né..Exatamente, e eu pensei em mais coisas, é que eu não consegui realizar, porque não tinha os meios pra realizar. Eu achava que eu ia fazer travellings enormes, eu enchia o roteiro disso: travellings enormes, em lugares que ficavam totalmente abandoados, e depois cortava pra uma coisa que tava viva, naquele momento, o tempo inteiro. O roteiro do Menino de Engenho era cheio de coisas assim: de dois tempos. Eu quando fui lá eu tomei um susto, porque eu vi os locais. Mas aí por quê eu não pude realizar? Porque eu não tinha recursos pra realizar. Se entrasse numa casa de purgar, lugar onde se limpa o açúcar, é um lugar cheio daqueles tonéis, assim, uma coisa enorme, não tinha como iluminar aquilo. Eu pensei em tirar algumas telhas, mas aí era um lugar tombado, não sei o quê, não pode tocar. Você fica sem saber o que fazer e acaba que tá bom, isso aí eu não posso fazer, vou fazer outras coisas. Mas aquilo já me perseguia, entendeu? Acho que o olhar pras coisas muitas vezes te evoca para uma situação. Simplesmente olhar a decadência do engenho já me evocava a situação anterior. E isso foi se repetindo em outros filmes. Até mesmo no Brasil Ano 2000 isso se repetiu, apesar dessa coisa... Eu quando fiz Brasil Ano 2000... eu já em 64, 65, já tinha a idéia de fazer o Brasil Ano 2000. Quando eu fiz, em 67, eu tava falando usando um anacronismo querendo falar do passado. Eu tava falando do futuro querendo falar do passado. Pra mim o ano 2000 é o passado. Você não viu o filme? O filme é exatamente isso, é uma brincadeira. Eu filmei em Paraty, num lugar, antes de Paraty virar aquela disneylândia de paulista, entendeu?, quando eu filmei lá, ali era quase tudo ruína. Então era... Eu espalhei coisas pela cidade, assim: faixas. As pessoas passam, tem uns dizeres assim, umas pinturas na parede: Brasil ad infinitum, são coisas assim. Você olha um lugar assim bem velho, caindo aos pedaços, Brasil ad infinitum, entendeu? Coisas... e às vezes coisas que eu fico assim meio surpreso em como é que continuam acontecendo tal como caricaturalmente eu previ no filme. Uma delas a seguinte: o famoso foguete brasileiro que foi a pique lá em, lá em Alcântara, que jogaram um foguete, se empenharam todos eles pra poder lançar o foguete, chamaram os franceses e era uma tecnologia francesa, e o foguete dançou. É o filme! Como agora essa veneração desse cosmonauta brasileiro, também, dez milhões de dólares, sei lá quanto foi, entendeu, pra botar aquele homem ali, em nome de uma pesquisa científica, que a gente não sabe até hoje o quê que é a tal pesquisa, que o cara trouxe... E o cara fez umas coisas meio esquisitas.
Fabio: plantou feijão no algodão... (risos) Plantou feijão no algodão, levou uma camisa do Flamengo, sei lá, fez umas coisas esquisitas (risos) e foi pro espaço. E foi pra lá, fazendo... HEXA, sei lá, (risos) umas coisas esquisitas. Isso tudo, esse namoro com o futuro, entendeu?, esse namoro com o tempo, ‘O tempo vai resolver’, isso já tinha me batido no Brasil Ano 2000, que é um pouco essa brincadeira. Que as pessoas chegam no ano 2000 num lugar, numa base de foguetes e só que ali nesse lugar tem um serviço de educação do índio que os índios já acabaram, não existe mais índios, e o chefe do setor desse serviço ta apavorado, porque vem as autoridades ali, e ele não tem como justificar o seu próprio emprego, como burocrata, ele cheio de carimbo lá dentro, de papeis assim. Então ele contrata uma família, que é a família do filme, pra fazer papel de índio, pra ele, entendeu?, pra quando o general chegar... O Brasil foi um filme que ao mesmo tempo era assim um filme pretencioso, com relação ao que eu pensava naquele momento, e ao mesmo tempo muito desiludido, muito amargo, então de novo, no ano 2000, era o general que mandava, as pessoas não curtiram muito... as esquerdas. Viraram a cara para o filme.Viraram a cara pro filme. O filme só não despertou maior ira por duas coisas: uma porque ele saiu do Brasil, foi pro Festival de Berlim e ganhou um prêmio em Berlim, e aí as pessoas ficaram sem saber dizer por quê que ganhou um prêmio em Berlim. Aí eu também não sei, enfim... As pessoas ficaram meio de mãos atadas, sem saber; e pelo fato de quando o filme passou, o filme causou uma irritação muito grande na direita. Os cinemas, eles eram exibidos em São Paulo e o cinema foi apedrejado, é... entraram umas pessoas com umas motocicletas, os caras desses comandos de caça aos comunistas, e entraram com motocicleta, quebraram os estandes do filme, jogaram pedra no cinema. Em 68. Já tinha, enfim, em 68 ele ficou pronto. Ele foi censurado uns quinze dias antes do Ato 5. Aí não se voltou a censurar o filme, e ninguém pegou o filme aí ele foi pro Festival de Berlim, e com aquele prêmio eu consegui uma exibição em São Paulo, contra a vontade dos distribuidores, que éramos nós mesmos, éramos uma cooperativa de distribuição, chamada Difilme, que depois acabou, infelizmente, então essa cooperativa não ia lançar o filme, mas eu vi que era hora de lançar o filme, se não eu não lançaria o filme. Eu já senti que tinha uma coisa estranha. Aí o filme foi lançado em São Paulo e aí depois dessa irritação ele foi chamado de volta à censura. Aí levou um ano e meio pra sair da censura e quando saiu, saiu todo estrupiado, todo cortado. Só em 1970 ele voltou a ser exibido aqui no Rio de Janeiro, e na ocasião que ele foi exibido eu tava preso no DOPS. Então todos esses fatores..
Fabio: Você chegou a ver o filme cortado?Não, eu não vi, eu mandei a cópia, eu cortei na cópia. Cortei na cópia. Mandei os pedaços do filme das cópias, não mandei o negativo, mandei os pedaços do filme e obtive um certificado de censura. As cópias do filme até pouco tempo você tinha acesso às cópias do filme absolutamente intactas. Nunca foi exibido. Foi exibido durante poucos dias no Rio de Janeiro. De alguma maneira esse prêmio em Berlin, essa prisão, essa reação da extrema-direita, deixou o filme assim meio defendido. O quê que esse filme é? É um filme assim ou assado? É daqui ou de lá? Essas polarizações que existem muito nas esquerdas aqui, então de repente você não sabia direito o que aquilo era. Entendeu? Se era assim tão pessimista em relação ao futuro do Brasil, era muito isso. E o filme foi retirado de cartaz e ficou retirado. Até que um dia ele passou na TV Educativa, vinte e tantos anos depois passou na TV Educativa. Vinte e tantos anos depois? É, por aí. Deve ter sido mil novecentos e oitenta e poucos que passou na TV Educativa, quase trinta anos depois. E ninguém sabia nem da existência daquele filme.
Fabio: Acho que é um dos filmes seus mais difíceis de conseguir
É, as pessoas não se relacionaram com aquilo. Mas eu durante algum tempo eu amarguei o fato de ter feito o filme e de ter pego dinheiro em banco pra fazer o filme. Isso aí foi trágico, porque você tem pagar quando você pega dinheiro em banco. E você para pagar.. Isso não foi uma coisa boa. Foi totalmente o contrário do que aconteceu no Menino de Engenho, que teve uma aproximação com o publico muito forte, deu muito dinheiro, me ajudou a produzir o Brasil Ano 2000.
Fabio: Foi o maior sucesso seu de público?
Po, deu muito dinheiro, anos. Botei dinheiro até em Terra em Transe, do Menino de Engenho. E no próprio Brasil Ano 2000, que foi feito antes. Não, que foi feito depois de Terra em Transe. Eu acho que os anos 70.. eu fui fazer um filme um pouco com a idéia de... Depois, fui fazer um filme, o Na Boca da Noite, com a idéia de que.. fazendo com custo zero, com quase custo nenhum, eu ia conseguir atrelar aquele filme a um filme estrangeiro, vender como programa duplo e tentar criar uma forma de ajudar a pagar o filme, né.. o Brasil Ano 2000. Pra ter uma idéia, eu fui peguei dois ou três financiamentos de banco, um financiamento de cada banco, e no final eu tinha onze bancos diferentes, que eu pegava dinheiro desse pra pagar aquele, já não sabia o que fazer.

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