O Invasor

por Pedro Ferreira

O primeiro plano de O Invasor já nos revela os processos que a narrativa sofrerá na mudança dos meios, e o que de essencial Beto Brant deseja modificar quanto à questão do ponto de vista. Em um plano-sequência, assistimos os personagens de Marco Ricca e Alexandre Borges, respectivamente, os engenheiros Ivan e Gilberto, chegarem a um bar na periferia de uma grande cidade, e sentarem frente a Anísio, que logo revela ser a câmera subjetiva deste plano-sequência. No diálogo, o crime está se configurando – Anísio se mostra dono da situação, Gilberto cede às exigências e nos parece cauteloso, Ivan não gosta do sujeito, ao mesmo tempo que o teme. – Tais relações entre os personagens se manterão iguais pelo resto da narrativa. Este plano-sequência que inaugura o filme já mostra de que ponto de vista se desenrolará o enredo, quem será o agente da história e, sobretudo, mais relevante a esta pesquisa, a origem do crime.

Se Ismail Xavier nos apresenta a questão do ponto-de-vista como um dos fatores pertencentes à trama que pode ser analisado na adaptação, pois co-existe entre os meios, em O Invasor, Beto Brant não esconde do espectador de quais olhos assistiremos o acontecer das ações, e o verter de tal ponto-de-vista em relação à obra literária acaba por ganhar significado discursivo. Além de indicar a impossibilidade de posicionar o filme em primeira pessoa, da mesma forma como esta se apresenta no livro, Beto Brant precisa suspender os pensamentos íntimos de Ivan – pensamentos estes que o livro não tem pudor de investigar - e manifestá-los na imagem. Sobre isso, o cineasta respondeu: "É muito tentador colocar belos trechos do livro como voz em off para caracterizar o estado de espírito do personagem, mas não posso – tenho que trabalhar com o meu meio." Pensar a transposição do estado de espírito de um personagem, do livro ao filme vem nos revelar uma característica intrínseca do aparato cinematográfico para a qual o cinema contemporâneo vem cada vez mais se tornando atento.

Se o tempo narrativo da literatura é por excelência o passado, embora a palavra possa viajar do passado para o presente ou para o futuro, o cinema, por sua vez, tem na imagem em movimento uma única dimensão temporal – a de um eterno presente, que se constrói e se renova em cada plano. Enquanto Marçal Aquino tem a possibilidade de revelar a infância ou as expectativas futuras de Ivan para caracterizar o personagem, ou trabalhar com axiomas indiscutíveis ("senti uma pontada no estômago") para contar seu estado de espírito, Beto Brant será obrigado a mostrá-lo em um aqui-e-agora, através das expressões labiais, dos gestos miúdos ou do modo como o personagem segura um copo – gestos cuja compreensão se baseia mais na interpretação do que na certeza. No seu mais recente filme, Cão Sem Dono, Beto Brant sintetiza a questão temporal do meio cinematográfico em um diálogo entre os dois personagens principais, quando Marcela diz: "Nosso namoro terá um começo, um meio e um fim.", e Ciro a responde: "Não, nosso namoro só tem meio.", e é este meio, isto é, o presente continuado do relacionamento que nos é mostrado na duração do filme.

O cinema e o pensamento contemporâneo seguem tal suspensão dos tempos passados e futuros, revelando-os, respectivamente, como construção arbitrária e possibilidades em meras especulações e expectativas. O rompimento desta linearidade evolutiva que a dialética de causa-e-efeito impõe inaugura um "cinema do presente", onde ganha notoriedade a expressão sensorial dos planos. Beto Brant ainda não explora o estatuto da imagem em O Invasor, mas tais questionamentos já ganham espaço em Crime Delicado. Este cinema contemporâneo tenta reaver o status de sua matéria-prima: a imagem em movimento. Na literatura, esta suspensão dos tempos também está presente, sobretudo a partir do início do século XX, como ocorre, por exemplo, no livro Um Aprendizado ou o Livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, que começa com reticências e termina com dois pontos, indicando a existência de um passado e futuro incapazes de serem concebidos, em um livro onde o texto busca chamar atenção para a matéria-prima literária: a palavra. O livro O Invasor, de Marçal Aquino, assim como o filme de Beto Brant, em certo sentido, se afastam dessa tendência, pois se estruturam de maneira linear – a opção pela linearidade implica um determinado tratamento do motivo do crime.

A inversão do ponto de vista fundamental do filme vai retirá-lo da subjetividade do sujeito tal como se apresenta no livro, e colocá-lo em múltiplos pontos de vista, priorizando em momentos significativos o ponto de vista do invasor. O invasor aqui não é propriamente Anísio, por mais que ele seja o sujeito da câmera subjetiva no primeiro plano-sequência, e em diversos outros planos do filme. O invasor é a periferia, e Anísio é o seu arquétipo. Durante o filme, assistimos a interpenetração cultural e a "invasão" desta baixa cultura em um universo central que não lhes pertence – do ponto de vista da cidade, assistimos a queda das tradicionais hierarquias nesta cidade onde todos são concomitantemente algoz e vítima da competição deste capitalismo selvagem. O crime tem origem na ganância de Ivan e Gilberto, e termina nas ruínas de uma cidade violenta, na queda das concepções tradicionais (o policial se torna vilão, o engenheiro pega em armas, e o amor se torna objeto de manipulação), neste atual mundo caótico e sem perspectivas. A origem é uma espécie de ganância inevitável do homem que o capitalismo desvairado incentiva, e é também inevitável o culminar neste caos. A manutenção da ordem racional só é crível nas aparências mascaradas (este é o significado do último plano do filme, quando Ivan é entregue nas mãos de Anísio por um policial corrupto, e o que vemos é Marina, dormindo e sonhando). Durante todo o filme, o que Ivan tenta fazer é fugir deste fim inevitável, por culpa ou medo, mas tal processo é irreversível, segundo as leis fundamentais da linearidade – Gilberto lhe responde: "Nem pense em tirar o corpo. Você está nessa comigo e vamos até o fim. Não dá mais pra pular fora, entendeu?".

Este olhar da cidade enquanto palco de violência figura entre muitos dos filmes brasileiros da atualidade, em títulos de peso internacional como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, ou Carandiru, de Hector Babenco, para citar os casos mais evidentes. Se o cinema novo recorreu à periferia em seu projeto de trazer para as telas a realidade do povo e procurar nela a identidade cultural brasileira, o cinema brasileiro contemporâneo, tanto os filmes de ficção como os documentários, vai procurar neste espaço um sentido distinto daquele da década de 60. Cidade de Deus e Carandiru tendem a uma humanização dos personagens da favela de modo a torná-los em vítimas das circunstâncias em que vivem – o espaço se torna o vilão, enquanto as pessoas são vítimas tentando se defender. Neste sentido, Beto Brant caminha no sentido oposto de tal caracterização: o espaço da periferia e da classe alta não se diferem senão pelas máscaras de hipocrisia que veste a cidade; o vilão é esta sociedade que visa o lucro acima de tudo, seja na pessoa do bandido Anísio ou do empresário Gilberto. Cinematograficamente, tal visão de mundo se exprime nas seqüências em que tais máscaras são tensionadas, como o último plano do filme já citado, ou na montagem paralela entre o assassinato de Estevão e a encenação familiar de lobo-mau que Gilberto faz para divertir a filha.

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