Walter Lima Jr - Entrevista parte II

Virou um inferno, um pesadelo. E o filme também não saía, né. Porque o filme não teve o certificado de exportação... uma série de coisas que a gente não conseguiu realizar.. E isso me levou em direção a televisão. E ao documentário, em primeiro lugar, e depois a televisão.O Na Boca da Noite é uma coisa também que não tinha mercado, apesar de a gente ter vendido aquilo para um distribuidora que tinha uns filmes de Maciste, sabe o que é Maciste? Aqueles caras marombeiros que derrubavam templos, aqueles ursos, Hércules, aqueles filmes, que existiam muito nessa época, entendeu? Era comum, toda hora tinha um filme de Maciste passando por aí. E eu vendi pra uma distribuidora que distribuía filmes de Maciste, atrelei a um programa duplo, pra pagar a obrigatoriedade. Então eu nunca vi um tostão daquilo ali. Eu vendia a preço fixo, que ninguém queria comprar. Aquilo não adiantou nada para mim.

Fabio: Eu não sei se é uma impressão muito pessoal, se você concorda. Você não acha que na Boca da Noite e alguns filmes que você fez lembram o cinema marginal, esteticamente. Não sei se você vê dessa forma, se você já ouviu essa comparação. Você faz os dois primeiros filmes mais ligados ali ao Cinema Novo, mas acho que aos poucos você vai se distanciando e abrindo para outros tipos de cinema.. não sei se é uma impressão só minha.Walter: Se você aproximar o Brasil Ano 200 e o Menino de Engenho.. o Brasil Ano 200 tem muito a ver com o Cinema Novo.

Fabio: Tem muito a ver? Eu acho que tem. Apesar de que esteticamente é um filme... Sabrina: Mais elaborado?É. Mas.. Você viu? Sabrina: Não, tenho que ver.Vou usar aqui uma expressão ao pé da letra: ele é um filme nos trilhos. Entendeu? Ele foi feito com carrinho, e coisa.. e quando eu fiz, as pessoas do Cinema Novo, os adeptos, fiéis e missionários, todos falavam: Pô, mas no carrinho? Não sei o quê. Esse negócio de câmera na mão, tudo tremido, isso é vagabundagem. (risos) Aliás, até hoje eu acho isso. Eu acho que eu não devo ver a câmera, eu como espectador. Não tenho que ficar olhando câmera. Eu to vendo uma história que a câmera tá contando. Não preciso ficar vendo ih, agora tremeu aqui... uma coisa interceptando minha atenção. Era essa a visão que eu tinha desses filmes do Cinema Novo. Continuo achando isso. Mas há um determinado momento em que você é engolfado pela precariedade, pela miséria. Você descobre que a miséria é parte da sua cultura. Entendeu? E isso.. talvez tenha sido isso o que aconteceu no caso da Boca da Noite. Diante de impossibilidades, e entendeu, eu e a possibilidade única de fazer: ó, tem uma câmera que tá parada aí, tem tantos negativos e pô, se vira! faz um filme. Um filme feito para a produção, não a produção para o filme. Entendeu? Não existia isso. A mordomia era zero. Então esse filme custou 20 hamburgueres, mais não sei quantos caldos de laranja, suco de laranja e três noites seguidas dentro de um banco. Depois de um dia lá fora, porque era um estado de espírito, que a gente tava vivendo, e o filme, acho que ele reflete isso. Quando eu acabei de fazer o filme, eu não pude terminar imediatamente, eu tava envolvido com coisas que meu irmão tava envolvido e eu acabei preso, e só vim a fazer o filme depois que saí ali do DOPS, da Polícia do Exército. Só fui pensar nisso, e aí inclusive mudar o nome do filme, porque ia virar um problema: o filme original ia se chamar "O Assalto", era exatamente o assalto ao banco. Porque os caras, o argumento que eles sempre vinham, nos interrogatórios, era.... Rolou um assalto a um banco? (risos). E eu dizia que não era bem isso, eu fiz um filme, um filme baseado na peça O Assalto. Porra, isso aí era mó complicação: Onde é que tá o negativo?! Ah, não sei onde é que tá.. entendeu? Eu to aqui, vou saber onde tá o negativo.. sei lá! Não tenho a menor idéia. Então... na hora eu meti esse título: Na Boca da Noite. Que de alguma forma era aquilo que a gente tava vivendo, acho que ficou mais forte até que O Assalto. Era uma noite interminável. Mas eu gosto desse filme. Eu acho que ele de alguma maneira me mostrou um dado que não era essa aproximação com o Cinema Marginal. Ele tem uma organização interna que não é caótica. Ele não apologiza o caos. Ele tem uma estrutura dramática, tem um discurso, tem um sentido. Os outros filmes eram na verdade a apologia do caos.Talvez a Lira do Delírio seja um filme que me aproxime mais disso, entendeu? Mas na verdade eu não sei nem até que ponto tem a ver, uma proximidade, porque eu nunca fui tão próximo assim desse...

Fabio: Nem das pessoas? WLJ: Não, eu tinha proximidade com algumas coisas, com algumas pessoas. Por exemplo: O Julio Bressane. Era uma pessoa que eu tinha conhecido e tinha levado pro cinema – foi meu assistente no Menino de Engenho. Então eu tinha contato com ele. Mas o cinema dele não era uma coisa que eu descobrisse alguma coisa ali que me interessasse a mais. Entendeu? Talvez o Rogério, do Bandido da Luz Vermelha, principalmente da Mulher de Todos. Mas aquele caos, não me dizia respeito. Aquele caos ali não me dizia respeito. O caos da Lira do Delírio é outro. O caos da Lira do Delírio ele já incorpora aí radicalmente a idéia do tempo. Radicalmente. Então ele reorganiza um sentimento que estava um pouco disperso, meio coberto nos outros filmes, mas agora ele radicaliza na montagem. E por outro lado, também, a idéia da Lira ela nasce de circunstâncias assim, muito distantes do cinema. Nasce da impossibilidade de se sentir pensante, livre, num país numa ditadura tão forte. Então os efeitos que isso causa são efeitos assim extremamente dolorosos, que atingem o teu comportamento. Você vai, de repente... Quando você descobre você está dependente, tá drogado, tá escapando. Seja marginal, seja herói. Esse tipo de coisa, a facilidade com que a insurreição se instala em você através dos artifícios dos mais vagos possíveis. Então você pegar um baseado e fumar passou a ter um sentido extraordinário, se você fosse pra praia e fizesse isso na cara de todo mundo. Então tinha um significado aquilo. E eu acho que a Lira do Delírio ela é um pouco a compreensão dessa esquizoidisse, entendeu? Eu acho que eu tava em farelos ali, em frangalhos, em pedaços, esse filme é um pouco isso. É tudo aquilo e o próprio cinema me ajudando a juntar os pedaços de mim mesmo, e das pessoas que eu vi em torno. É um pouco isso. Isso me aproximava daquele cinema marginal? Não sei. Não sei até que ponto. Até porque há um gosto de imagem que não é comum no cinema marginal, há um gosto ali que não é comum. Uma vez eu vi um cara, no Festival de Brasília. Veio um dos exegeses do Cinema Marginal e ele veio falar que a Lira era um filme marginal. E eu não falei nada, porque imediatamente pulou. Eu tava falando com o Sganzerla e o cara veio com esse papo. E o Geraldo Sganzerla esculhambou com o cara. Eu não falei nada, fiquei olhando aquilo. Dizia que o cara não sabia filmar. Esculhambou o cara e três gerações do cara. Partiu em defesa do filme usando esse tipo de argumento. Pra mim não era novidade o que ele tava falando. Eu fiquei ali ouvindo aquela história.Usando esse tipo de argumento, o que para mim não era uma novidade. Porque eu senti que o filme tinha claramente uma linguagem enquanto aqueles outros que eu vi não tinham linguagem nenhuma. Era uma atitude, era uma atitude. Vale a atitude, mas não é tão suficiente assim, quanto a linguagem. Eu acho que A Lira é um filme que lida com significantes. O tempo inteiro a disposição desses significantes, aparentemente sem significado. Mas ele é o cruzamento de vários significantes, da linguagem cinematográfica, mas sem uma proposição de significado imediato, a não ser que você for pro afetivo. Quer dizer, se cair no afetivo aquilo passa a fazer sentido. Então em nome do que aconteceu com a Anecy, o desaparecimento dela, aquilo passou a ser o significado e eu acho que, no momento em que o filme aparece, o próprio evento da morte de Anecy ele criou um significado para o filme que de alguma maneira ele enevoou o próprio filme. As pessoas viam uma coisa que na verdade o filme era, mas o filme é o jogo desses significados, desses significantes. Ele é, sobretudo, isso. Então, quando eu vi o filme fora do Brasil, isso foi visto assim imediatamente. A mim me chocou pensar que nunca ninguém tinha visto isso. Nunca ninguém tinha visto isso. Sempre me faltava isso, em relação ao filme. Aquilo que o filme... é um filme extremamente doloroso para mim. Então eu achava tão claro isso, e isso não era percebido, entendeu? Havia uma certa comoção extra-filme. E às vezes até tem ainda uns recalcitrantes que insistem nessa visão melodramática da coisa. Mas eu acho que hoje em dia o filme já se impõe por ele próprio. Ele é quase um documentário desse desbunde geral. Ele tem uma vitalidade e uma energia que é dele. E eu na Itália tive a oportunidade de conversar com um cara que tinha feito uma análise do filme muito interessante a respeito dessa coisa dos significantes, e que me explicou assim, de alguma maneira, uma coisa que eu aproveitei na minha compreensão até do Glauber. Ele falando a respeito de um outro filme que também convive com os significantes, mas aí como um tema, e não como mise en scène. Que é o filme do Kubrick chamado The Shining. O The Shining é um filme onde os significantes engolem o protagonista. De tal maneira ele é engolido que ele projeta no espaço todos os fantasmas e os personagens que estão dentro de um livro que não quer sair! Ele não consegue produzir o livro e a obra de arte começa a escapulir das páginas, pra um espaço onde ele teria vivido uma experiência anteriormente. Ou não.

Fabio: Ou não. (risos) E aí o cara, a respeito disso, falava assim. E eu comecei a achar que isso parecia a vida do Glauber. Fiquei achando assim, porque o Glauber foi um cara que os significantes engoliram ele. Ele não sabia mais concretizar, realizar plenamente as idéias, e ele foi desconstruindo, desconstruindo o que já não tinha mais o que desconstruir, entendeu? E que aquilo virou um estilo, uma maneira de ser, onde ele era o Apolo disso, dessa desconstrução permanente. Acabou fazendo um filme disso o tempo inteiro. Mas quem conheceu, quem conviveu com o Glauber, eu convivi e conheci bastante o Glauber, dentro de casa, muito perto. O Glauber não era uma pessoa que tivesse, vamos dizer assim, que fosse tão alheio à vontade de fazer um cinema narrativo. Muito pelo contrário. Ele queria fazer um cinema narrativo, só que ele não sabia. Entendeu? Ele não sabia. E a partir de determinado momento é que ele foi descoberto como a pessoa que preconizava um tipo de cinema. E ele acreditou! Ele acreditou, e pronto: engessou ele, e ele ficou vendendo aquele peixe permanentemente. Quer dizer, ele começou a criar significantes que não realizavam o sonho anterior dele. Então aquele espectador que nele havia também, ele matou. Matou o cara. E eu vi isso com ele: ele matou esse cara. O espectador que levou ele a fazer cinema, ele matou esse cara. Ele se impôs a esse cara, a essa figura assassinada por ele mesmo, dentro dele.

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