Chico Antônio, o herói com caráter

por Fabio Andrade

Um dos maiores vícios deixados pelo Cinema Novo foi a pretensão de reescrever a história do Brasil. Resquícios desse sentimento parecem entranhados até hoje de forma assustadora em parte da produção cinematográfica brasileira, e por conta dessa tentativa de reconfigurar um passado, parte do presente permanece carente de interpretações. “Chico Antônio – o herói com caráter” parte dessa mesma motivação de redefinir um passado. Embora o encontro com um Macunaíma original represente um desvio de olhar para aqueles que raramente são vistos (e, no caso de Chico Antônio, foi inspiração para uma obra que transcende seu anonimato), é também uma tentativa de revisar a história pelos olhos da coxia, dos bastidores da ação. Motivação e filme, porém, são coisas diferentes. Eduardo Escorel tem plena consciência disso, e constrói seu filme ciente de que está lidando com uma pessoa, e não com um personagem histórico. É nesse salto que “Chico Antônio” transcende a herança cinema novista e torna-se obra atemporal.

Apesar de trazer “herói” em seu título, “Chico Antônio – o herói com caráter” acerta justamente ao ir pelo caminho inverso. Ele fala sim de um personagem esquecido pelo mundo, mas tem a sensibilidade de perceber que os personagens são importantes para determinadas pessoas, em determinados momentos. Chico Antônio encantou Mário de Andrade com sua voz, assim como provavelmente encantou várias outras pessoas que não possuíam a autoridade poética de Mário. Assim como existem diversos cantores espalhados pelo mundo que encantam pessoas todos os dias, mas que acabam esquecidos com o passar do tempo. Eduardo Escorel sabe que a diferença está no fato de Mário de Andrade ter imortalizado Chico Antônio, o personagem, em seu texto, e justamente por isso faz todo o seu filme construído não em torno de Chico Antônio (o que seria quase uma adaptação pro cinema do poema), mas sim em torno da relação dele com Mário de Andrade.

Com esse gesto, Escorel abre seu tema, e acaba fazendo uma emocionante poesia incidental sobre a memória. Em vez de falar do esquecido, fala do esquecimento. Não existem culpados ou heróis, existe uma situação que se formou por uma série de motivos que não necessariamente precisam ser julgados. Falar sobre a situação, a relação entre aquelas pessoas, é o que importa. Curiosamente, aos poucos percebemos que Chico Antônio nunca havia perdido, porém, a consciência sobre sua própria imagem: suas memórias em relação a Mário de Andrade estão sempre prontas, no topo da mente, para serem desfiadas. Chico Antônio sabe o que querem que ele lembre, e parece perceber que são essas lembranças que o mantém vivo no imaginário das pessoas.

É interessante, portanto, perceber como o filme registra o próprio processo da memória: ao chegar à casa de Chico Antônio, conhecemos alguém um dia famoso pelo canto, mas que diz não poder mais cantar. Ao ser lembrado de Mário de Andrade e Antônio Bento, Chico Antônio parece perceber que aquela relação se firmava justamente por meio de seu canto, e, por ela, volta a cantar. O esquecido aos poucos passa a se lembrar, e acompanhamos todo esse processo de frente. O filme gira, então, em torno desse grande acaso (a lembrança) e constrói toda a sua narrativa a partir disso. Seja ao tocar o ganzá que um dia dera pra Mário de Andrade, ou ao ouvir que um conhecido já havia morrido há dois meses sem que ele sequer ficasse sabendo, Chico Antônio (com e sem aspas) nos fala sempre sobre o tempo.

Esse tempo influi até mesmo na feitura do filme: vemos os meses passar - com todas as adversidades que por acaso não aconteceram - o filme se construir, a intimidade nascer, e, aos poucos, nascem novas relações. Elas surgem da de Mário de Andrade com Chico Antônio, mas passam a ser também da equipe de filmagem com Chico Antônio e com as pessoas que o cercam, com Antônio Bento, com a família de Mário de Andrade, com todo aquele material de pesquisa, chegando até à relação do espectador com aquele universo. Esse universo também é escravo do tempo e só faz sentido naquele momento. São mundos separados unidos por um breve instante, que nunca poderá se repetir da mesma forma como foi da primeira vez. Cada momento é único, insubstituível, e diz respeito somente a si próprio.

É por isso que o final do filme é tão bonito: vemos Chico Antônio cantar pela última vez, e sabemos que suas lágrimas não caem só pela lembrança de seu momento ao lado de Mário de Andrade e Antônio Bento, mas também por aqueles divididos com aquela equipe de filmagem, aquela história, aquelas lembranças, e até mesmo conosco. Ao cantar, Chico Antônio percebe que, por mais que cante novamente, nunca mais será como aquela vez. Nada nunca é.

Um comentário:

Clednews disse...

Oi, gostei da iniciativa do blog, espero sucesso. Tenho um blog e nele coloquei o que pude de informações sobre Chico Antonio com fotos e vídeo. Sou admirador desse coquista potiguar que foi meu conterrâneo e até hoje é homenageado e reconhecido pelo meio artístico, cultural e acadêmico. Cledenilson Moreira, Pedro Velho-RN. meu blog: http://clednews.blogspot.com/